quarta-feira, 16 de julho de 2008

RAÍZES - Destinos cruzados



- Olha quem ele é! – Surpreendeu-se Alex, ao reencontrar o velho amigo das brincadeiras da Ribeira e rival do sul, emigrado em França.
- Cada vez estás mais novo, ca…ra…lho! – Gaguejou o comparsa de escola e também camarada de armas, aos tempos da velha Senhora, em Angola.
- Então, por vacance(s)?
- Nunca falho às festas da Sra. da Saúde – adiantou o Tai e um habitué dos andores da procissão – Os meus filhos já nem ligam a isto, ficaram em Nancy. Vim apenas eu, ma femme e este meu netinho, o Michele.
- Outros tempos! – Anuiu Alex – Eu continuo a cumprir a promessa de ir ver a entrada das bandas, ali à praça. Vou apreciar o contramestre do Zezinho que vai reger a banda dos Bombeiros, enquanto aproveita para cumprimentar a comissão de festas e os maiorais da câmara!...
- Ele ainda improvisa aqueles fados e uivos guturais para os banhistas?
- Parece que sim. Também te digo, sem estas figuras típicas de fazer engolir o cigarro atrás da língua, por ilusionismo barato, e dar o seu pé de dança, já nem parece Esposende...
- La belle idée! Acom…panho-te.
No largo da Câmara Municipal, à espera da entrada das bandas de música.
Atento às diabruras de Michele, o avô tenta repreender o puto:
- Michele, tu vas tomber!
- Mais non … grand- père…
- Então, que contas? – Reatava a conversa Alex.
- Olha pá, os filhos já eram, os netos já são e agora estou qua…se na retrete
- O quê, mas tu não trabalhavas nas obras?
- Mais oui! Que…ro dizer, que estou a tratar da minha reforma.
- Fazes bem. Por cá, já só de bengala, com reumático ou esclerose múltipla comprovada é que a gente irá de vacances … p´rá retrete!...
- Ou la la? C’est tout une merde.
- Que já se cheira ao longe! ...
Entretanto, Michele tentava escalar a estátua do Correia de Oliveira.
- Michele, tu vas tomber! – Preocupava-se o amigo.
Virando-se para Alex:
- Lembras-te dos velhos tempos, lá no Ultramar?
- Se recordo…
(…)
Alex viu-se mobilizado para a guerra e, com ele, mais uns milhares de mancebos por esse país fora e alguns dos seus conterrâneos.
Já em Luanda, reencontrara-o no Grafanil – centro de mobilização geral de Angola.
- Então, pá, também por aqui? - Admirou-se o amigo, de Operações Especiais, enquanto aguardava ida para o Leste.
- Como vês, parece que calha a todos!...
- Olha, a malta só aguarda transporte dos páras e fala-se numa mega operação lá para o Leste …
- Porra, parceiro, isto está assim tão mau?
- Bem, como ainda estás a chegar, será melhor veres por ti. A propósito, para onde vais?
- Sei lá, pá, é lá para o Norte, um aquartelamento algures no mato …
- Vê que não te calhe a rifa de Nambuangongo, aquilo é fogo da pesada!
- A nossa malta é tropa macaca mas o capitão é dos Comandos!...
- A propósito, sabes quem está na prisa?
- Conta.
- O Salsichas. O gajo pirou-se e andou à porrada com um alferes e pô-lo a soro e ligaduras, no hospital militar!
- E agora?
- Agora, vai alinhar por duas comissões de serviço, se entretanto sair da gaiola!
- Boa sorte, lá pró Leste – augurou-lhe Alex - a gente ainda se há-de ver por aí...
- Para ti também. Ciao.
A caminho do novo aquartelamento.
A fila indiana das Berliets que os conduziam para o Uíge nunca mais chegavam. Terra batida, barrenta, pegajenta de mosquitada. E subiam, e desciam …
Picada fora, procurou no bolso do camuflado um cigarro. Entretanto, no transístor do condutor, a Rádio Luanda anunciava manifestações patrióticas no Puto. Um político de ocasião ainda discursava: (…) "A quantos souberam bater-se para que todos possam viver (…) Por isso, nesta manhã dos heróis prestamos sentida homenagem aos varões assinalados que fizeram história no Ultramar português" (…)
A seu lado, o Furriel progressista reavivara poemas de Manuel Alegre.
Ouviu-lhe:
Pergunto ao vento que passa
Notícias do meu país
(…)

O Cabo alfacinha aproveitou a boleia poética e trauteou:
Mamãe, tu estás tão longe de mim
Mamãe, sinto que estás a chorar
(…)

Pelas cinco da matina, ao fim de doze horas daquela tormenta, sonolentos e alquebrados, feitos manteiga e rançosos de poeira por tanto solavanco, alguém berrou da primeira viatura:
- Eh, Companhia, chegamos! Toca a perfilar para a revista.
Como morcegos assustados, ainda meio sonâmbulos, as viaturas militares iam vomitando toda aquela “carne para canhão”, preparada de armas e bagagens para o que desse e viesse.
De nascente, a aurora avermelhada aproximava-se, a passos de gigante, e olhava curiosa aquela tropa maçarica que nem imaginaria nas que se iria meter. À porta de armas do Batalhão, a sentinela ainda dormitava e acordada de supetão, saltou da guarita e berrou:
- Meu Sargento, chegaram os Comandos!
O Sargento de Prevenção, chateado por o acordarem a desoras mas farejando ao longe aquelas fardas engomadas, logo lhes “tirou as medidas”.
- Quais Comandos, minha besta-quadrada, são os maçaricos do Puto que vão p’ra Mucaba. Vai acordar o nosso Oficial de Prevenção.
Meia hora depois, o Comandante da Unidade, acompanhado do Tenente Formosinho, aparecia à porta de armas:
- Atenção, Companhia, apresentar… armas! - Grunhiu o Capitão daquela tropa fandanga.
Um estalejar de mãos nas G3, acompanhando os coices das botas dos soldados no alcatrão da parada, ressoaram quartel dentro, substituindo-se ao toque de alvorada do corneteiro.
Respondendo à saudação de Ordem Unida, o Comandante mandou descansar.
- Descansar … armas!
O Tenente-coronel Amoroso ladrou as boas-vindas aos recém chegados. No seu discurso patriótico, apelou à desinfecção dos turras na zona prometendo até umas feriazinhas surpresa no Puto, a quem lhe trouxesse alguns desses “troféus” como prova. E continuou:
- “ (…) Portugal é um Império e Angola faz parte dele – ressoava ainda o seu vozeirão, assustando a passarada que esvoaçou em momento tão solene – por isso, soldados, sede dignos da farda que usais como os bravos heróis de Pidjiguiti, Mueda e Baixa de Cassange” (…) – e terminando: muita “merda” para a Companhia.
No trajecto, a caminho do aquartelamento, uns bons 40 quilómetros ainda para norte do Uíge, o transístor cantarolava:

Ó povo heróico português,
Num esforço estóico outra vez
(…)
Angola é nossa
Angola é Portugal!...


Desde aquele dia, Alex sentira que a confiança que o animava se começava a esvaziar como um balão.
Seriam os novos senhores da guerra!
(…)
Já no final do desfile das bandas e os cumprimentos da praxe.
- Pois é, pá – rematava o Tai – logo no arraial vai haver disputa entre as duas bandas. Vou ver se também desenfer…rujo as pernas, se os gajos tocarem umas rap …sódias.
Cada vez mais preocupado com o filho, que já se encarrapitara na estátua do poeta.
- Michele, tu vas tomber!…
Após queda do miúdo.
- Filho da puta, já caíste!
Michele aterrara são e salvo nas hortênsias do canteiro, mas nada de grave, a não ser uns pequenos arranhões num braço.
- Mais non, Michele, c’est tous bien mon fils? - Afligiu-se o avô.
- São crianças. Isso passa logo – despediu-se Alex – Se a malta não se vir, felicidades. Boas férias.
- A bientôt!





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