sábado, 5 de março de 2011

Recordar é viver / Estórias recontadas da 3411

De regresso em MVL (Movimento de Viaturas Logístico)

Se, da primeira vez, dada a urgência por motivos de evacuação, viagei de Noratlas, agora, de regresso à Companhia, fora sorteado com uma guia de marcha, em MVL, até ao Songo. Esta foi outra das muitas experiências pelo que passei pois ir numa coluna de viaturas mistas (civis e militares) e viajar durante incontáveis horas de noite foi mais um teste à capacidade de resistência de um qualquer mortal.
Saímos de Luanda para Carmona, e daqui para o Songo, prosseguindo o MVL ainda mais para Norte para outras Companhias às quais, como a nossa, se destinavam os respectivos abastecimentos. Viajei como "pendura" ao lado do condutor civil que, por ofício, já participaria nestas viagens há tempo mais que suficiente pois a sua Chevrolet quase que sabia o caminho de cor.
A coluna estendia-se estrada fora qual exército de formigas a caminho do seu buraco e com escolta militar de uns quantos camiões GMC. Parávamos de duas em duas horas para desentorpecimento, mas logo retomávamos a marcha pois a noite era má conselheira, temendo-se sempre qualquer surpresa menos agradável e sermos alvo de um qualquer ponto de mira escondido capim dentro. Devo ter adormecido e readormecido umas tantas vezes e só acordando perto de povoação ou aldeamento face à estrada onde os canídeos logo avisavam da nossa passagem. Claro que os meus ossos iam todos desconjuntados pois em cama ambulante era a primeira experiência que fazia.
Os abastecimentos eram mais ou menos periódicos e estavam a cargo da Intendência do Exército. Os camiões iam literalmente carregados e para fazer uma leve ideia socorro-me de relatos de "Guerra e Paz- no Norte de Angola", referente a um MVL similar do Negage para Maquela do Zombo, em Marçio de 1964, onde o trajecto de uns duzentos e tal kilómetros se prolongou só por dezasses horas!... Então relatava-se: "...três dos camiões iam completamente carregados de vinho num total de 6400 litros (500 litros garrafões de 10 litros e 14 pipas de 100litros); levavam mais de 2000 kg de açúcar; 200 Kl de spaguetti; 1000 lt de azeite; 300 Kg de azeitonas, etc., tudo num total de 122.000#00...".
Contabilize-se agora, em 1971, e já com o quase o décuplo de tropas instaladas no terreno, de Luanda para as nossas bandas (mais de 400 Kms) a quantidade de tonéis necessários e mais umas tantas toneladas de géneros variados, todos a bambolear picada fora que, se fossem leite, chegariam ao seu destino feitos já margarina ou queijo da serra!... E imagine-se ainda o tempo gasto naquela "peregrinação"!...
Chegamos a Carmona amarrados e empestados em gasóleo. Quando me dei conta, já no Songo, fui logo pedir "rebaixa" ao Capitão e devo ter adormecido um dia e uma noite seguidas para tentar recuperar de tão grande maratona.
A partir dali, detestei camiões!

In "Também eu estive lá..."

quinta-feira, 3 de março de 2011

Recordar é viver / Estórias recontadas da 3411 (*)

Outros "golpes de mão"
As noites tinham a particularidade de se tornarem nostálgicas e, por algumas vezes, havia que quebrar essa nostalgia com saídas furtivas fora do perímetro do quartel.
Socorrendo-me dos meus braços direitos, o soldado mecânico X (um alentejano de gema), do cabo mecânico Y (natural de Matosinhos) e do cabo condutor W (um portista dos sete costados), que reunia no parque auto, planeávamos o próximo "ataque" à sanzala mais próxima. Já conhecedores do terreno, partíamos para mais uma das nossa aventuras: um velho jeep willes (pára-brisas deitado sobre capot) conduzido por mim, tendo como pendura o W e no banco de trás, compenetrados dos seus papéis, o X e o W, de mansinho, lá nos furtávamos em direcção ao objectivo, com uma certa complacência do soldado de serviço à porta de armas que fazia olhos de mercador.
Percorridos os poucos quilómetros no sentido da estrada Songo-Carmona, entrávamos na sanzala, que ficava ao nosso lado esquerdo e, desligando as luzes do jeep, tentávamos passar despercebidos, pelo que, calmamente, avançávamos na escuridão até ao objectivo que era, concretamente, um redil, pertença de um comerciante da vila e proprietário de um talho no local.
De imediato, o X, saltava do jeep e, rapidamente, embrenhava-se no meio das cabras e ovelhas; no espaço de uns minutos já pulava para o jeep com o troféu de caça aos ombros, tendo ainda numa das mãos o sinal do crime, uma faca de mato ensanguentada com que despachara a vítima. No regressso, já em velocidade de fórmula 1 até ao quartel, estava ainda acordado o cozinheiro da companhia, o Z, com a missão de preparar a vítima, à Hotel Ritz, durante a noite para, nas seguintes, fazermos o repasto de tão lauto banquete.
No dia seguinte, era ouvir o talhante, vociferando contra tudo e contra todos e acusando os turras que lhe "voltaram a limpar mais uma cabra", enquanto nós, muito sérios, ainda íamos fazendo a digestão e rindo cá por dentro a bandeiras despregadas.

(*) In "Também eu estive lá..."