quarta-feira, 23 de julho de 2008

Euros e euros...


RAÍZES


4. CALIBRE 48

A guerra do Iraque já fez mais de um milhar de mortos entre os soldados norte-americanos e da coligação, desde que foi derrubado o então poder instituído do governo de Sadan Hussein, e, proclamada a tomada de posse por parte da coligação (…) a guerrilha, continua activa, após a passagem do poder para o novo governo instituído. A paz parece ser cada vez mais difícil de instalar-se, recorrendo agora a guerrilha a outras formas de destabilização, com raptos à mistura e a exigir dos países envolvidos a retirada das suas tropas (…), ouviu-se na SIC.
Atento ao desenrolar das últimas, o amigo Heitor aproveitou para deitar conversa:
- Eh, pá, já viste isto? Está pior que no nosso tempo. Estes cabrões mereciam era que lhes fizessem o mesmo “Olho por olho, dente por dente”.
- Se isto fosse por cá não sei o que seria – adiantou o Rogério.
- Dizem que nem temos submarinos! E quanto a helicópteros eles são tantos que nem apagam os “fogos” do Parlamento, que fará a torreira que vai por esse Portugal fora - interveio Alex.
- É mesmo, Portugal está arder de lés a lés e os políticos não há meio de darem a cara – insistiu Heitor – está tudo de vacanças.
- Alguém toma um cafezinho? - Perguntou a dona da casa.
- Boa ideia – anuiu o marido –, já agora, trás aí uns whiskys para acompanhar.
- Eh, malta, o raio desta guerra faz-me lembrar as nossas de putos, lá na Ribeira.
- Conta aí - espicaçou o Rogério.
(…)
A atmosfera amistosa da visita dos conterrâneos provocou o desfiar de recordações que se prolongariam pela noite dentro. Naquela viagem ao passado, não tão longínquo quanto isso, fez-se a ponte com os dias ora vivenciados e cada vez mais cheios de incertezas. A propósito dos bancos da escola, teceram-se alguns considerandos.
As batalhas vitoriosas dos nossos reis faziam da nossa História o povo mais intrépido de que há memória. Eram decoradas com fé quase maometana e em precisão de datas e nomes, sendo assunto obrigatório nos exames da quarta classe, perante um tribunal de professores que nos passava ou enfiava a raposa se nos desviássemos daquelas verdades absolutas como paradigmas a imitar. Ainda que tinham alguma complacência com os problemas da Matemática, agora com a nossa História não brincavam em serviço!
Tais feitos mirabolantes, contados pelos cronistas da época e inflacionados pelos copistas de el-rei, tornaram-se como fixações doentias, narrando, pelas quatro dinastias dentro, batalhas hercúleas tão arrojadas como Aljubarrotas e Atoleiros que ainda hoje permanecem como vestígios e recordações onde um qualquer arqueólogo pode verificar, através da sedimentação dos despojos, a que correspondeu tão avançada táctica militar!
A cartilha narrava apenas dois ou três desastres nacionais, entre os quais, Alfarrobeira – talvez pelos nossos guerreiros andarem de disenteria por tanta alfarroba enfardada! – E afiançava mesmo que o desastre de Alcácer-Quibir fora mais devido ao nevoeiro da ocasião que à valentia da mourisca, que logrou dar cabo da estratégia da quadratura do quadrado, na formação dos lanceiros d’O Desejado, quando as cavalgaduras inimigas lhes terão caído em cima. Valeu a D. Sebastião se ter “evaporado” a tempo e, reza a crónica, que a sua alma veio pairar até Esposende, em estátua petrificada, erguida pelos seus devotos crentes, e quase elevado à honra dos altares, tal a sua semelhança com o seu homónimo, mártir romano, ali na matriz:
- Ai, meu rico S. Sebastiãozinho – rezava a tia Micas, virada para as nuvens de bronze que aureolam o jovem rei – fazei-de-me que o meu rico Tóne volte a salvo do mar de Cristo – enquanto desfiava um rosário de Ave Marias, Padre Nossos e Améns…
Era a cobrança de uma dívida mais que merecida pois El-rei, em 1572, dera-lhe Carta de Provisão, libertando o lugarejo de 370 moradores da tutela de Barcelos.
Tais façanhas viriam a ser recreadas pela canalha da vila, virando lutas e jogos de rua onde o inimigo-amourado era rebaptizado: os do Norte, os do Sul, do Jardim, do Grémio, os da Lagoa, os da Central, cada um destes reclamando para si o estatuto de exército português.
- Eh, malta, lembrais-vos das nossas espadas, feitas de paus, a imitar os lanceiros gregos? – Recordou o Rogério, que era do Norte.
- Isso não era nada. A nossa “artilharia pesada”, armada de calhaus e godos do rio, à primeira investida, decepava logo as vossas couraças! – Gozou de novo o Rogério.
- E a nossa “infantaria ligeira”, de lanças aguçadas de vassoura velha, nas “motas” com rodas de madeira, feitas pelos presos da cadeia, a cinco tostões!?
- Olha aí! – entrou na conversa Alex – eu cheguei a ir armado de Robin Wood, arco e flechas, restos de varetas de guarda-chuvas. Para azar meu, despachei até para o hospital o “Trinca espinhas”, e o desgraçado teve de levar injecção contra o tétano, que eu cismava e afiançava que era contra o teto! …
- E aquele estratega militar, lá do sul, que devia imitar tudo dos filmes dos romanos!? Levava a coisa tão a peito que nas primeiras linhas da refrega os seus guerreiros vinham todos armados de couraças circulares feitas das tampas de bidões … - ria-se o Miguel.
- Aquilo é que eram guerras! – Concordou o Zé. Numa destas fizemos alguns prisioneiros mas a brincadeira ficou-nos cara pois os familiares deram-nos cá uma sova do caraças!
(…)
- Ouvi aqui – interrompeu o Gigas, lendo a Bola do dia – aqueles espanhóis dum canastro deram outra vez “baile” ao Porto, no hóquei. Não há meio de quebrar o enguiço.
- A propósito – adiantou o Heitor – e os nossos sticks de tronco de couves que faziam mais “galos” nas canetas do adversário que golos nas balizas...
- … e estas eram a calhaus e encurtadas, à surrapa, sempre que a bola se aproximava …
- E quando a malta ia jogar futebol contra vós? – Gozou de novo o Miguel.
- Espera lá, um dos nossos craques foi até jogar para o Esposende S.C. , mas logo no primeiro treino acabou por jogar descalço pois a patanha, calibre 48, era tão pequena e calejada que não houve chuteira que lhe servisse!... No treino seguinte, foi preciso sapateiro-ferrador para lhe tirar as medidas!
- O melhor era a porrada pelo golo, sempre avaliado a golpe de vista. Era boxe do melhor. Às vezes, lá aparecia a GNR para amenizar a contenda. Muitos olhos viraram à “Belenenses” quando os seus olheiros até eram adeptos do Benfica e Sporting!...
(…)
- Eh, malta, já é tarde e acho que me vou – bocejava já o Heitor, depois de bem regado do whisky – combinamos aquilo amanhã, O.K?
- Nós também vamos – despediram-se os restantes comparsas – Ciao.
- O. K. Obrigado pela visita e aparecei mais vezes pois recordar é viver.


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