Cap. 4
Ignorante dos procedimentos militares, fui apanhando o
jeito a decorar os graus hierárquicos, desde Soldado pronto, até Marechal e
batendo pala[1] a tudo quanto tivesse
divisas e galões[2]; no fim da especialidade
prometiam-nos o grau de Aspirante a Oficial mas, até lá, não passávamos de uns
míseros capachos em quem toda a tropa pronta[3],
procurando talvez saciar a sua ambiçãozinha frustrada de subserviência militar,
descarregava também a sua própria frustração, o que ocasionaria, mais tarde,
uma certa sede de vingança, virando-se o feitiço contra o feiticeiro.
Calhara-me na rifa, na recruta, um dos muitos alferes
chicos[4] que
proliferavam na instrução, se bem que, felizmente, não tivesse sido tão mal
assim se comparado com os que nos lotearam na especialidade. Este outro,
peneirento quanto bastasse, comprazia-se mais em passar lustro aos galões,
amaciar a pistola Walter e gabarolar-se de suposto engatatão; não se compadecia
das inúmeras flexões que nos fazia pagar por “dá cá aquela palha”, quando não
nos rebentava a todos, após uns crosses bem puxados até à Ericeira, a 15
quilómetros de Mafra – depois de termos “assinado o ponto” do camuflado nas
ondas da praia e, no regresso, o irmos secando, ainda colado ao corpo; outras
vezes, para não variar daquela rotina, fazia-nos acordar, estremunhados, quais
despertadores em automatismo contínuo, lá pelas três ou quatro da matina, para
alinharmos na parada, a foras desavindas até para mochos e morcegos, só para
nos desejar: “boas noites, continuem a dormir bem”! E lá voltavam, os nós para
a enxerga.
“Carimbados” como qualquer peça de gado e quase
perdendo a identidade como indivíduos, com um número mecanográfico X sempre
antecedido do respectivo apelido, era dessa forma que nos apresentávamos aos
superiores militares. Recordo que na especialidade passei a fazer parte do 5º
Pelotão, nº 108 da 4ª Companhia de Instrução, 2º Ciclo, C.O.M. Mafra.
Não muito conscientes deste exílio forçado, era
natural que uns tantos tentassem desertar e, na altura, pelo menos uns quatro
ou cinco acabaram por fazê-lo. Lembro um cadete que, ardilosamente, se deu ao
luxo de levar como recordação umas tantas peças já desmontadas da G 3 a caminho
da Bélgica!
[1] Fazer continência aos
superiores militares levando a mão esticada ao lado direito da testa pelo que
também deve ser correspondido de igual forma pelo superior.
[2] Pequenos rectângulos de
fazenda apostos às ombreiras da farda militar pelos quais se distinguiam as
várias patentes hierárquicas.
[3] Os militares do Quadro que
já haviam cumprido a instrução.
[4] Nome pejorativo pelo que
eram conhecidos os oficiais de carreira da Academia Militar.