terça-feira, 29 de setembro de 2015

Cap. 4 - A recruta


Cap. 4

 A recruta

Ignorante dos procedimentos militares, fui apanhando o jeito a decorar os graus hierárquicos, desde Soldado pronto, até Marechal e batendo pala[1] a tudo quanto tivesse divisas e galões[2]; no fim da especialidade prometiam-nos o grau de Aspirante a Oficial mas, até lá, não passávamos de uns míseros capachos em quem toda a tropa pronta[3], procurando talvez saciar a sua ambiçãozinha frustrada de subserviência militar, descarregava também a sua própria frustração, o que ocasionaria, mais tarde, uma certa sede de vingança, virando-se o feitiço contra o feiticeiro.

Calhara-me na rifa, na recruta, um dos muitos alferes chicos[4] que proliferavam na instrução, se bem que, felizmente, não tivesse sido tão mal assim se comparado com os que nos lotearam na especialidade. Este outro, peneirento quanto bastasse, comprazia-se mais em passar lustro aos galões, amaciar a pistola Walter e gabarolar-se de suposto engatatão; não se compadecia das inúmeras flexões que nos fazia pagar por “dá cá aquela palha”, quando não nos rebentava a todos, após uns crosses bem puxados até à Ericeira, a 15 quilómetros de Mafra – depois de termos “assinado o ponto” do camuflado nas ondas da praia e, no regresso, o irmos secando, ainda colado ao corpo; outras vezes, para não variar daquela rotina, fazia-nos acordar, estremunhados, quais despertadores em automatismo contínuo, lá pelas três ou quatro da matina, para alinharmos na parada, a foras desavindas até para mochos e morcegos, só para nos desejar: “boas noites, continuem a dormir bem”! E lá voltavam, os nós para a enxerga.

“Carimbados” como qualquer peça de gado e quase perdendo a identidade como indivíduos, com um número mecanográfico X sempre antecedido do respectivo apelido, era dessa forma que nos apresentávamos aos superiores militares. Recordo que na especialidade passei a fazer parte do 5º Pelotão, nº 108 da 4ª Companhia de Instrução, 2º Ciclo, C.O.M. Mafra.

Não muito conscientes deste exílio forçado, era natural que uns tantos tentassem desertar e, na altura, pelo menos uns quatro ou cinco acabaram por fazê-lo. Lembro um cadete que, ardilosamente, se deu ao luxo de levar como recordação umas tantas peças já desmontadas da G 3 a caminho da Bélgica!



[1] Fazer continência aos superiores militares levando a mão esticada ao lado direito da testa pelo que também deve ser correspondido de igual forma pelo superior.
[2] Pequenos rectângulos de fazenda apostos às ombreiras da farda militar pelos quais se distinguiam as várias patentes hierárquicas.
[3] Os militares do Quadro que já haviam cumprido a instrução.
[4] Nome pejorativo pelo que eram conhecidos os oficiais de carreira da Academia Militar.

Cap. 3 - Os primeiros dias no quartel


Cap. 3

 Os primeiros dias no quartel

No dia seguinte e após vista grossa do sargento de manutenção ao meu físico empacotado nos seus 49 quilitos, foram-me distribuídos os uniformes nºs 2 e 3 para usar na instrução (o nº 1, facultativo, era o uniforme de gala, a expensas nossas) constituídos, respectivamente, por números de pares de calças, camisas, blusões, quico e boina, botas de lona e cabedal, cantil, marmita e a espingarda em uso na altura, a G 3, além de outros apetrechos indispensáveis à instrução. Surpreso fiquei quando o sargento me preveniu que teria de entregar tudo no fim da recruta!...

Experimentando os novos fatos-macacos, de cor verde-garrafa, quase me senti um astronauta, pois parecia navegar no espaço, tal o desperdício de fazenda para um somático tão franzino e cuja pele até tentava emigrar do corpo por ter vergonha de aí ficar embrulhada. Logo, fui reclamar outro fardamento, pois no distribuído caberiam não um Rei [1] mas quase toda a família real junta, já para não falar das botonas tão largas e compridas que os dedos dos pés se afligiam com tanto estacionamento! Em resposta, só ouvi um grunhir do sargento, cuspindo de asneiras o cabo da arrecadação para que se despachasse com mais fatos-macacos, e de que “não havia mais trocas e que as fatiotas iriam ao sítio logo que visitasse a Lagoa” – mais tarde, havia de perceber a graçola e dar-lhe razão. Lá me consolei quando na formatura de apresentação na parada, reparei no cadete [2] Carapeto, espremido dentro da farda e rebentando pelas costuras no seu enchido de peso-pesado, e o Sousa que mais parecia ressuscitado da lavandaria, minguado em calças uns 20 cm para os seus 1,90 de altura!...

Entretanto, adaptados os ossos e a mente à nova realidade, foi tempo do primeiro susto. Nesse primeiro dia, enquanto decorria a instrução e ficávamos a saber os nossos lugares no pelotão e os respectivos comandantes, eis que surge em plena parada uma ambulância militar transportando dois cadetes feridos, do 2º turno de instrução, e que quase “batiam a bota” nos exercícios da lagoa pois não tinham aguentado a pressão!

 

 



[1]  No serviço militar somos reconhecidos pelos nossos apelidos.
[2]  Instruendo a oficial.
 
 
 
 
 
 
 

quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Também eu estive lá...


Cap. 2

 

Mafra  06 de Julho/70

 

Despachado a Guia de Marcha, como era costume do Exército para qualquer itinerário a fazer pelos militares incorporados nas suas fileiras, lá aterrei no quartel do convento de Mafra, à altura, a servir de COM (Curso de Oficiais Milicianos). Por chegar fora de horas e à civil, o que terá surpreendido o soldado de serviço e de plantão à porta de armas que não me conheceu de lado algum, logo ele me questionou ao que vinha e logo lhe respondi ter sido colocado ali para o tirocínio do Curso de Oficiais Milicianos. Chamado o Oficial de Serviço, este pediu-me a identificação e, confirmado o meu nome numa extensa lista, mandou guiar-me até uma caserna, através de labirínticos corredores, onde já dormitavam uns tantos desconhecidos que, mais tarde, haveriam de ser os meus camaradas de armas. Cansado como vinha, quase me apetecia dependurar-me no cabide do armário mais próximo, com roupa e tudo, mas acabei por atirar o esqueleto para a enxerga do beliche mais à mão, só acordando ao toque da alvorada.

Para trás, havia ficado interrompido um ciclo de estudos e experimentava agora uma nova aventura, mista de voluntariado à força e de autoimposição, na procura de um novo rumo a dar aos meus 22 anos, idade em que todos os sonhos são possíveis.

Escusado será dizer que levei um par de dias para me situar na “avenida” da minha caserna – La Fayette, se bem recordo – pois os corredores do quartel, situado na ala sul do convento, eram de tal forma compridos e de inúmeras transversais acima e abaixo que, o mais das vezes, eu acabava por desaguar no sítio errado. Dizia-se até que o convento, com as suas 4.500 portas e janelas, tinha tanta ratazana nos seus alicerces que era ineficaz qualquer raticida, antes, os faria multiplicar indefinidamente, de modo que a cambada constituía uma tropa de elite à parte, com generais ancestrais tão gigantes que assustavam qualquer mortal!

De resto, a malta haveria de compartilhar ainda a caserna com outros comandos, já lá instalados, cujas comichões bateriam em número qualquer record para o Guiness !