segunda-feira, 28 de abril de 2008

Análise ao livro pelo Mestre José Machado no discurso de apresentação.

APRESENTAÇÃO DO LIVRO: TAMBÉM EU ESTIVE LÁ…


“A apresentação do livro pode ser a exposição dos pontos de vista que agradaram ao leitor ou que se impuseram rigorosamente de modo a que, sendo aquele ou este o caso de ter agradado ou de se ter imposto rigorosamente, permita mobilizar outros e mais leitores para o mesmo livro criando à volta dele uma corrente discursiva que lhe sustente a existência prolongada, pelo menos até a esgotar “. É por isso, pelo menos, por que estamos aqui.
Vou cingir-me a três dimensões da minha receptividade ao livro:
- O título;
- A representação da narração ou relato;
- O estilo da linguagem.

O título.
A frase suspensiva que serve de título ao texto, por conter a presença do advérbio simples de inclusão “Também”, faz parte de um jogo dialógico, insere-se, portanto, numa corrente discursiva sobre o tema em questão: a guerra colonial levada a efeito na Província Ultramarina de Angola, numa fase concreta da nossa história imperial. Também eu estive lá…esta frase suspensiva só se compreende inserida num diálogo de alguém que está a falar sobre a guerra colonial, das vozes que por aí andam a falar sobre a guerra colonial e vem mais um e diz: também eu estive lá…. “Também” é um advérbio de inclusão e cumpre aqui, plenamente, a sua função. Esta frase, este título transmite, vincadamente, a posição do seu interlocutor perante o discurso de outros: ele inclui-se como parte testemunhal desse acontecimento, deixando em suspenso o conteúdo discursivo que tanto poderá ir no sentido, eu também estive lá e vou dizer coisas que vocês não disseram, vou dizer outras coisas ou vou dizer até o contrário daquilo que vocês andam para aí a dizer, marcando o contraste com o dos outros ou apenas revelando na mesma direcção de outros discursos uma outra valorização comparativa ou superlativa, eu também vou dizer o mesmo, o mais, melhor, de outra maneira diferente, os acontecimentos já relatados ou em discussão aberta (para quem estas coisas interessarem, podem consultar a Gramática de usos de Português de Maria Helena de Moura Neves, que é um calhamaço grande mas que tem a sua piada sobre os usos que damos às palavras no Português).
Na introdução, o autor fará uma variação desta preposição deslocando o advérbio para uma posição anterior ao verbo: “Nós também estivemos lá…” e já não vai dizer Também nós estivemos lá… mas vai dizer “Nós também estivemos lá…”. Num caso e noutro, o advérbio não afecta o valor de verdade da oração mas modaliza o discurso, é o focalizador do que está à sua frente perspectivando-nos a responsabilidade das suas “estórias” quer no plano pessoal (“Também eu estive lá…”), quer num plano colectivo (“Nós também estivemos lá”). Por esta análise, aceitaremos que o “Também eu …” do título, obriga o autor à inclusão do seu testemunho, a par do de outros, como o daqueles que já publicaram sobre a guerra colonial no formato de livros de história ou no formato de estudo ou documento, e o “Nós também…” obriga o autor à inclusão do discurso dos seus colegas, seja para complementar o seu, seja também para entrar em diálogo com outras vozes através do livro; à partida, somos levados a pensar que o “Também eu estive lá…” e o “Também nós estivemos lá…” é para entrar em diálogo com os de fora, mas, neste caso do livro de Lino Rei, eles entram em diálogo com os que estão dentro do livro, dentro do livro estão outras vozes, está a voz de Sérgio Bacelar, está a voz de Laidley, de Ribeiro, de A. Teixeira (pessoas que escreveram documentos críticos sobre a história da guerra ou sobre, enfim, sobre os lugares de guerra), está a voz do Governo do Distrito de Uíge, está a voz de Manuel Alegre, está a voz de Lobo Antunes, está a voz do Governo de Angola, estão as vozes dos Movimentos de Libertação de Angola, está a voz do Diário de Notícias e estão as vozes da Internet; está também uma voz de um general romano, Marcos Flavinius e que cumpre nesta história um papel importante e que fará, para uns, sentido e, para outros, não fará tanto sentido; digamos que o autor vai utilizar o estratagema, a determinado ponto do livro, de justificar, ao fim e ao cabo, a função do soldado e vai fazê-lo, não recorrendo aos valores seus contemporâneos ou a vozes suas contemporâneas, mas recorrendo à voz de Marcus Flavinius, citando portanto um romano que explicou, desta forma, o sacrifício dos soldados romanos quando eram enviados pelos seus generais para combater: Tinham-nos dito, no momento em que deixamos a terra natal, que partíamos em defesa dos direitos sagrados que nos são conferidos por tantos cidadãos instalados lá longe, tantos anos de presença, tantos benefícios concedidos às populações que têm necessidade do nosso auxílio e da nossa civilização. Pudemos verificar que tudo isso era verdade, e, visto que era verdade, não hesitámos em derramar o imposto de sangue, em sacrificar a nossa juventude, as nossas esperanças …”. Provavelmente, justificaremos, mais adiante, estas vozes do diálogo. O título reveste-nos pois para uma vontade de participação de um diálogo aberto com testemunhos que se afirmam tão válidos como os demais.

A representação da narração.
Sobre este aspecto, da receptividade da leitura, para quem nunca foi à guerra (como eu), a palavra que mais me ocorre é essa mesmo de palco ou plano de representação perante um público, a representação permanente da guerra como palco de operações (se calhar, numa linguagem usada em termos literários) afigura-se-me que foi trazida para servir de planificação narrativa; os capítulos sucedem-se como relatórios dos factos e dos momentos vividos; os factos e os momentos são os que se consideram de melhor solução em palco, quer porque contêm as cenas mais críticas e sintomáticas, quer porque se prestam a poderem ser atravessados por uma linguagem dramática mais eficiente e de motivação para o leitor, o espectador.
Este plano de concepção do livro de Lino Rei passará despercebido a muita gente mas de alguma forma eu gostava de vos chamar à atenção para ele. Os capítulos são episódios muito curtos, numa ordem cronológica, sem dúvida, diacrónica, o fio condutor do relato é a sucessão diacrónica da experiência de vida do sujeito-autor que são os factos e as operações da vida militar que comandam a exposição; não são os sentimentos das personagens envolvidas, não são as ideias subjacentes ou ordenadoras dos mesmos actos ou operações, não é a ideologia militar nem sequer o ponto de vista do próprio autor, este vai servir de ponte além dos factos e as operações. Mas mesmo quanto aos factos e às operações militares que são relatados, vejamos uma particularidade interessante que os reveste: ele são os factos vividos, mas recordados em ocasiões sucessivas de convívio, factos portanto que fazem parte do imaginário dos encontros dos veteranos de guerra, factos que se prestaram e prestam ainda a uma construção discursiva peculiar, aqui analisado por sentimentos que são valores humanos, factos que são balizados pela dor, pela festa, pelo sofrimento, pela entrega à causa e pela sua aceitação, pelo cumprimento do dever mas também pela contrariedade, por uma certa contestação sub-reptícia que nunca é assumida explicitamente, pela abnegação, pela solidariedade mas também pelo desenrascanso, pelo exemplo mas também pela escapadela, pela vida e pela morte.
Duas interrogações podem surgir inevitavelmente na cabeça do leitor. Quem ler o livro de Lino Rei, a determinada altura, pode perguntar-se: alto lá! De facto nota-se, começa-se a ver, que as histórias com e, para distinguir da história documental com h, da história provada, começámos a apercebermos que, de certa forma, andam na voz de todos, nos convívios que eles fazem anualmente, e encontrar agora o seu intérprete, encontrar o seu relator? E então começamos a apercebermo-nos que a maneira como as “estórias” são contadas, o grau de consciência dos factos vividos, é o que resulta da sua memória ao tempo ou é o que resulta do distanciamento entretanto acumulado?
Outra interrogação: até que ponto, esta forma de comunicar as memórias colectivas individuais de um tempo de vivência intensiva, é o retrato fiel e bem concebido da própria natureza da guerra e da própria inculturação que a consome? Que é que isto quer dizer? O relato é feito vinte e nove anos depois e, entretanto, acumulou-se muita forma de os contar, muita forma de os ver, de os perceber, de os percepcionar e o relator e o autor vai usar aqui o estratagema, de que vou falar aqui, da ordem da linguagem, da ordem do estilo que, a meu ver, tem imensa piada - um pouco como o sr. cónego usou agora - porque quem conta “estórias”, de alguma forma, se calhar, tem que as contar pelo fio do tempo que passou mas eliminando o fio, há um fio de tantos anos a separar a “estória” mas, quando a contamos, voltamos a ela e esta eliminação do fio leva a sobrepor os planos da narração, os planos dos factos. A determinada altura, a consciência que o autor transporta ao contar pode não ser a que teve na altura mas a que tem hoje sobre esses factos ou que, se na altura teve não verbalizou tão bem e hoje é-lhe permitido verbalizar. Mas interrogo-me eu: esta forma de contar pode ser uma inculturação, uma educação da própria vida militar (e acho o livro de Lino Rei sintomático neste aspecto) e esta construção da narração é certamente apoiada no estilo da linguagem mas só ela poderá responder a estas perguntas.

O estilo da linguagem
O ar brincalhão, humorístico e até irónico, havia também um q.b. histriónico, não no sentido de apalhaçar mas no sentido de criticar, caricaturar, tipificar modos de vida, formas de actuação, estilos de ver, formas de actuar, domina a comunicação em grande parte do livro – claro que o livro tem determinadas partes mais reflexivas, mais sérias, mas tem uma grande dose de páginas em que predomina uma linguagem humorística, irónica, caricatural, q.b. das situações. Este ar brincalhão, este ar agradável pode ser fruto tardio dessa convivência entre os militares, mas pode ser também a aprendizagem de recurso que acompanhou todo o percurso das vivências militares de um colectivo que logo na raiz, logo no começo da sua vida se exprimiu singularmente escolhendo o nome da sua Companhia, a ÔNZIMA. Quer dizer, quando a gente se interroga porque é que o autor faz recurso a uma linguagem humorística em que os episódios são narrados contrapondo-lhe a grande área de contraste responsável por este humor, ironia, é a cidade, a cidade cosmopolita, a cidade dos hotéis, do Ritz, do Portugal com a ponte 25 de Abril, são as avenidas, são os bourmés dos grandes hotéis; esta linguagem - que vai depois vai servir de contraste quando se está a falar da cantina do quartel, das ruas do aquartelamento do Songo, dos passeios que as pessoas dão, do conforto que há nos transportes militares – é um estratagema a que o autor continuamente recorre pois alguns soldados julgavam que estavam certamente no Ritz quando chegaram à cantina, outros a andar de Jaguar quando andavam naqueles jeeps, as estradas, as picadas, outros gostariam que fosse o boulevard… certos hotéis austríacos que são referidos aqui, pelo menos de 2 cidades, servem de contraponto a essa caricatura.
Ora, se nós pensarmos que, logo no início da vida militar, esta Companhia de soldados tivera a ousadia verbal de deslocarem o centro das atenções para formas de estar um bocado irreverentes, certamente aprenderam que a instituição militar se vive por esse lado, quer dizer, a tragédia mais vale ser vivida pelo lado da comédia para não termos tanta consciência da sua gravidade. Estamos perante um jogo de linguagem que mistura contrastivamente vocábulos referenciais com vocábulos energéticos contemporâneos ou mais tardios em relação aos acontecimentos narrados, é o caso concreto da ponte 25 de Abril que veio depois, pelo menos o nome, e o efeito produzido é o de suportar melhor as altas tensões da Companhia que é, a meu ver, um capítulo exemplar desta concentração da linguagem humorística e irónica do autor; acresce a este processo de recurso à linguagem da “caserna” o facto de o autor marcar também o seu discurso com o recurso à música, quer como acto de vivência, ele foi o animador, foi o músico suporte de muitos convívios, o músico instrumentista que aguentou as sessões, os serões, os copos, os fados, os Bailinhos da Madeira, os Malhões, provavelmente também algumas músicas de protesto que já na altura havia alguns soldados que as sabiam de cor e salteado, mas também a música entra como linguagem de recurso estilístico no campo figurativo portador de como figuras do imaginário; cito de exemplo e só para ler este bocadinho: “ … e mais não disse o “maestro” enquanto a sua “banda” desafinada subia já nas viaturas apressando-se para tocar na “orquestra” da peluda. Sobrou o rasto dos unimogs daqueles foragidos, em correrias semifúsicas de velocidade a caminho do Songo, deixando no ar nuvens de poeira que eclipsaram o sol e brindaram os nossos ainda lustrosos camuflados com uma tez barrenta, suficiente para neles se poder escrever a dedo. Os claxons das viaturas disputavam em altura tímbrica os uivos de dós de peito daquela tropa fandanga que ainda ecoaram por minutos enquanto desapareceram no horizonte. Estávamos por nossa conta e risco. Éramos os senhores da guerra! “.
E mais não digo, pelo que, só lendo o livro se poderá contestar quanto eu disse. Leiam o livro, meus amigos, vale a pena.

José Machado
2002.12.04

domingo, 27 de abril de 2008


Tentando partilhar com os meus ex-camaradas alguns momentos da cerimónia do lançamento do livro "Também eu estive lá...", e os ecos de então, disponibilizarei neste blog alguns takes do evento, sobretudo para todos aqueles que pelas mais variadas razões não puderam estar presentes em Braga.

Um abraço,
Lino Rei

sexta-feira, 25 de abril de 2008

Hoje é 25 de Abril de 2008.
- O que é que isso nos diz (aos antigos combatentes do Ultramar) e quais os seus antecedentes?
Após grandes parangonas jornalísticas a tentar dissecar-se o multifacetado do acontecimento histórico e o paradigma que ele nos legou - a liberdade de opinião e do poder ser-se e estar-se como tal - não deixaremos de opinar, quem foram e são alguns dos ditos heróis que configuraram este virar de página da nossa história?
Se alguns deles até "estiveram lá..." e por convicção de ideias mereceram, efectivamente, o epípeto de "capitães de Abril", outros refugiaram-se na estranja e por cobardia desertaram do chamamento da Pátria!
- Alguns acabariam por engendrar o seu carreirismo político no actual regime, "arvorados" como os novos salvadores da Nação, enquanto nós, que lá estivemos, servimos de "carne para canhão" e fomos literalmente postos à margem em quase tudo o que a Pátria nos deve, física e moralmente, e que o novo sistema político "vai varrendo para debaixo do tapete".
É vê-los como se comportam nos dias de hoje, com uma maioria que tem sido de autêntica ditadura do "quero, mando e posso" e com total desprezo pelas liberdades alcançadas naquele 25 de Abril!
São estes os nossos políticos.
- Querem nomes?
R/Olhem para os seus actos.