sábado, 26 de dezembro de 2015



 
Em entrevista à "Esposende Serviços TV", o autor fez uma antevisão do que virá a ser o seu próximo livro - RAÍZES - a ser lançado na Primavera de 2016, sobre a realidade esposendense aos anos 50', 60' e 70'  com os seus personagens reais e fictícios, num retrato vivenciado também pelo próprio Alex personagem principal dos 28 contos que complementam o livro. Lino Rei.
 

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Um Natal diferente


Um Natal diferente

Só quem está fora da mãe-pátria pode avaliar, por si, o quão custoso é passar esta época festiva fora dos seus familiares e amigos; que o digam os nossos emigrantes, que o digam todos aqueles que nas mais diversas circunstâncias, algum dia, tiveram de comemorar o nascimento do Deus-Menino fora do seu torrão natal.

Retomando palavras do jornalista: “Para o milhão de combatentes que, ao longo de treze anos de guerra colonial, foi deslocado para África, o Natal constitui uma das páginas mais angustiantes das suas comissões, um trauma com data previamente marcada, um momento simbólico com raízes profundas na sua origem, na sua educação, na sua cultura, traduzindo o sacrifício físico e psicológico, a tristeza do afastamento familiar e a dor da guerra, em alegria do dever cumprido, por amor à Pátria, na ânsia do triunfo, com dádiva de suor e sangue” [1]. Também connosco não foi excepção.
           Tentando colmatar, de alguma forma, a reunião à volta de cada uma das nossas famílias na Metrópole nesta noite santa de Dezembro de 1972, também nós, a família da ÔNZIMA, nos unimos para a comemorar. O rancho foi melhorado com a carne de uma pacaça que o capitão e os alferes Nunes e Coelho tinham abatido para a ocasião; as grades de cerveja foram duplicadas; embora dificilmente, também lá se arranjou o bacalhau para a consoada; o whisky foi distribuído pelo pessoal; o vago-mestre teve que passar diplomas suplementares a tantos outros cozinheiros de ocasião que queriam demonstrar os seus dotes na cozinha, confeccionando e disputando especialidades, neste ou naquele bolo, que ornamentariam a longa mesa da messe desse dia; enfeites vários e velas de ocasião, davam o ambiente próprio àquela noite onde, disfarçadamente, ainda escorria, neste e naquele rosto, alguma lágrima de saudade que, teimosamente, fazia lembrar cada um dos seus. Era noite de consoada.
No fim do repasto e já bem regados, era a ocasião para a apresentação da Parada de Estrelas improvisada mesmo ali à mão. Foi o furriel Lopes, um alfacinha de gema, que deu o mote, com dois ou três fados corridos que logo tiveram o coro acompanhante de quantos ainda recordavam a letra. De imediato, o furriel Cunha (de saudosa memória) perito em letras e canções de intervenção (nesta altura a PIDE parecia andar arredado do mato) ripostaria com a declamação do Pedro Soldado, de Manuel Alegre e Adriano Correia de Oliveira:

Já lá vai Pedro Soldado
Num barco da nossa armada
E leva o nome gravado
Num saco cheio de nada
Triste vai Pedro Soldado

Ainda as palavras trovejavam no ar quando outro soldado madeirense entrava na competição, cantarolando, Paco Bandeira, no Lá longe onde o sol castiga mais…

Quem nunca viu
Quem nunca andou a combater
Não dá valor nem faz ideia o que é sofrer
Ter de matar
Para não morrer
Saber sofrer sem chorar
Saber chorar a sorrir
Lá longe
(…)

Para não ficar atrás, o alferes Coelho, lá foi trauteando um fado coimbrão, a Samaritana, provocando um disfarçar de olhos vidrados aqui e ali. A noite não ficou completa se os meus camacheiros, liderados pelo Emanuel e pelo “Caganeira”, vestidos a rigor com umas toalhas de ocasião e com as damas improvisadas, não rematassem com o Bailinho da Madeira, pondo toda a malta a dançar e a fazer mais depressa a digestão. Na parte que me toca, lá me fui revezando na viola e no acordeão, ajudado por um sexteto rítmico, no matraquear dos talheres nos copos. Já a noite ia alta, ainda nos ecoavam nos ouvidos as últimas estrofes do nosso Malhão. Era hora do descanso do guerreiro e, nessa noite, até o corneteiro teve de fazer horas extraordinárias.

 

 

 




[1]  RIBEIRO , J., Marcas da Guerra Colonial,  Colecção: Campo da Memória-2, Ed. S.A. 1999, p. 225.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Ca - A instruçãop. 6


Cap. 6

A instrução

A nossa instrução distribuía-se por quatro áreas: 1) teorização e manuseamento das diversas armas e prática de deslocação pelo mapa na diversidade dos tipos de terreno e a que se juntava a Ordem Unida [1]; 2) carreira de tiro, onde se treinavam as mais variadas armas e que nos deixava surdos para o resto da semana; 3) exercício físico, sobretudo as corridas de meio fundo e as passeatas[2] pelo pórtico, galho, corda, muro, rapel, slide, corrida de obstáculos e a famigerada lagoa[3], entre outros; 4) semanas de campo com movimentações noturnas e diurnas em que nos presenteavam com algumas rações de combate, numa engorda forçada ao nosso “cabedal”, por umas não sei quantas mais cartucheiras, granadas, G 3, tenda, poncho e colchão de campanha, que nos iam arreando a cada passo, de forma a experimentarmos a vida de burros, já que mais parecíamos bestas de carga.

Confesso que não me senti tão mal assim nas provas físicas, até me alcunharam de “perna eléctrica”, pois em velocidade e resistência ficava quase sempre lá na frente do pelotão; o mesmo se diga no tiro, onde, apesar do chinfrim dos balázios, até conseguia discernir algum som musical. Idem na parte teórica dos testes, tipo código de instrução hodierno, sistema americano, onde tínhamos de acertar em uma de quatro respostas, algumas de tal forma ambíguas que às vezes nem o Espírito Santo de orelha ou a lotaria ajudavam grande coisa!...

Na Ordem Unida, onde se apurava a forma de marchar e outros movimentos de coordenação, nunca havia rotina. Desde o  “ombro… arma”,  “frente… marche”, “alto!”, “descansar … arma”, e outras mais ordens em parada, já fora do quartel, a caminho de uma qualquer instrução ao ar livre, aquando da passagem de uma beldade de ocasião, o chico do alferes sibilava: “alto!”, “apresentar…arma”. Assustada a moça e fugindo a sete léguas, logo a marcha prosseguia para “passo de corrida” pois os bravos de pelotão monodiavam já um Solesmes feito gregoriano de ocasião:

 

O cadete é o melhor da tropa

Quando lá não está mais ninguém

As mulheres até ficam loucas

Co’as estrelas que a sua farda tem.

(…)

 

Até que se fazia tempo de voltar á Tapada para mais umas incursõezitas feitas de orientação mapa-bússola, tipo pady paper, assustando aqui e ali veados, gamos e javalis à solta, resquícios aos tempos de D. João V e que fizeram as delícias de monarcas que, alojados no Convento, se queriam dedicar à caça.

         Ao almoço, era tempo de saborear uma frangalhada com arroz à caril, ou outras ementas de engorda, nas mesas gigantescas de mármore do longuíssimo refeitório abobadado da messe e caiado a imaculada brancura.

         Na instrução da tarde seguia-se outra dose industrial, tirando-se azimutes a tudo quanto era sítio ou cota para, logo mais, se bombardear em morteiradas um pseudo-inimigo, alojado algures em morro de aldeia vizinha, mas que dele só restariam umas reencarnações de passarada assustadiça que debandava para outros sítios, receosa talvez que a 3ª Guerra Mundial começasse por aquelas paragens! E em passo de corrida lá voltávamos ao quartel-convento para confessarmos os nossos pecados por tanta “matança” feita. Não contentes com uma guerrazinha menor, logo nos prometiam, para o dia seguinte, um concurso de pesca desportiva nos “perfumes” da lagoa, acossados por bala real ou granada lançada por instrutores sádicos e dementes; em alternativa, éramos convidados a uma familiarização mais chegada ao galho, pórtico, rapel, slide, túnel, corda, salto de obstáculos e coisas do género, acabando este e aquele cadete numa visita forçada à enfermaria, co, relatório a transparecer um “excesso de zelo” no treino a decorrer! Éramos ainda os “filhos de um deus menor”. O que nos reservaria o Olimpo do Ultramar?

         Após a instrução da tarde tínhamos uma lufada de ar fresco fora do quartel, no que aproveitávamos para atacar os cafés da vila em “golpes de mão” que equilibravam as nossas proteínas, já que a comida do rancho mais parecia condimentada a soda. De soslaio, lá se “iam tirando as medidas” às poucas beldades de ocasião que, já calibradas com tanto mânfio e todos do mesmo clube, “davam às de vila Diogo” ao ouvirem alguma promessa de eterna fidelidade para pertencerem ao rol das casadas, em namoros relâmpagos quanto poderiam ser os de cada instrução. Sonhos nossos que também só duravam enquanto não fôssemos acordados pelo toque de recolher ao quartel.

Decorreram assim os meses da recruta e da especialidade, findos os quais, a 27 de Novembro de 1970, recebemos os galões de Aspirante a Oficial – uma estria diagonal dourada em fundo preto – passando agora a estar mais atentos a corresponder às continências do que, antes, a tentar evitá-las.

         Embora garbosos de um estatuto que há seis meses atrás era só “para ver por uma canudo” pelas dificuldades passadas, não imaginaríamos talvez o que nos adviria mais tarde pois que cada rubrica e autorização nossas eram um atestado de co-responsabilidade a assumir, não só perante os graduados inferiores, classe dos sargentos e praças, mas sobretudo perante os oficiais superiores.



[1]  Formação e movimentação apeada uniforme de uma unidade militar à voz de um comando.
 
[2]  Tom jocoso pelos quais, dada a sua dificuldade, eram conhecidos estes obstáculos; na verdade, um salto mal calculado no galho - árvore com  um  ramo descascado para o qual o instruendo se teria de arremessar de uma certa altura e a determinada distância deste por forma a ficar nele suspenso - ou o medo e o tremor das alturas quando no pórtico - pilares de cimento dispostos em forma de quadrado com uma largura  de menos de 40 cm e vários metros de comprido e a cinco metros de altura do solo, que o cadete teria de percorrer - e no muro - parede mural encimada em feitio ovoide e que separava zonas específicas da tapada de Mafra, mas de alguma extensão e a x metros de altura, que o instruendo teria não só de atravessar, como numa fase mais adiantada tentar acelerar -, punham em risco a integridade física de cada um de nós.
[3]  Charco de dimensão e profundidade variáveis onde proliferava a mais diversa imundície que os cadetes teriam de transpor, sobretudo de noite e no meio de um intenso tiroteio – às vezes com bala real ! – iam rebentando, à mistura, granadas e de que resultavam, muitas vezes, acidentes, alguns até mortais, e que faziam o gáudio de certos instrutores sádicos e o medo inconsciente e bem real dos instruendos.

Cap. 5 O Ritual


Cap. 5 

O ritual

Sair e entrar no novo “principado” de Mafra exigia “passaporte” e este dependia dos humores de ocasião do oficial de serviço. Para passar a “fronteira”, os pedidos, em papéis coloridos, eram solicitados de véspera. Assim, havia licenças de nojo, de casamento e outras, a que juntavam as de simples ausências do quartel e, as mais desejadas, as de fim-de-semana. Na formatura de saída, em longas filas rabeando e antes que se acertasse com a perspectiva da perpendicular na horizontal da Ordem Unida, vociferada em guinchos baritonais pelos cabos milicianos de serviço, como se de desfile de misses se tratasse e à falta das medidas ideias a serem avaliadas (peito, anca, coxas), o cadetezinho tinha de apresentar-se todo engomado da cabeça aos pés.

Na parada, os candidatos à “deserção” temporária, excediam-se em parafusos de imaginação de asseio equacionado as trunfas aparadas (à escovinha ou à máquina zero) de forma a aureolar a boina ou o boné regimentais, barbas escanhoadas à meninos de coro, botões dos blusões  mais que lustrosos nos respectivos “apartamentos”, armas de latão  e estrelas de instruendo nas ombreiras a espelhar e, sobretudo, o cinto brasonado que chamava a atenção para o vinco impecável das calças; a peritagem não se ficava por aqui pois o teste final estava reservado para os sapatos ou as botas conforme o uniforme a sair. Para o efeito, havia que “dar férias” ao segundo par suplente, uma vez que agora o ritual era mais exigente e no início as “chuteiras” ficavam mais bassas que vidro de para-brisas em nevoeiro cerrado, o que adiava a provável saída para as calendas gregas! Com a experiência, a estratégia aconselhava a rapidez do verniz, umas escovadelas histéricas com o último grito em graxa “made in China” ou, quando em urgência, os ofícios de sapateiro entendido e que constituía o gáudio do cadete perante o elogio do comandante num “ bravo, nosso cadete, pode sair e um bom fim-de-semana” e quase a merecer medalha de guerra!

Corríamos tresloucados para a porta de armas e passada a circunscrição do nosso “principado” voltávamos aos condados da terra natal de cada um, sem que antes, no comboio ainda em andamento e em rapidinhas aos W.C. nos desfizéssemos daquelas fardas engarrafadas  à pressão, passando a aperaltar-nos à civil e a evitar outras inspecções da pegajenta Polícia Militar, com faro predilecto para embirrar com magalas e cadetes, nas estações de S. Bento ou Campanhã. Na viagem de regresso, o processo invertia-se e alguns, ainda sonolentos e mal dormidos pelas primeiras classes das charretes e “expressos do Oriente”, mal tinham tempo, à porta de armas, de endireitarem a gravata, quando não se apresentavam até com as botas trocadas!...