segunda-feira, 21 de julho de 2008

Catraia do Cávado


RAÍZES


3. A prova de(o) esforço

Alex passeava na cidade tentando descontrair um pouco. De soslaio, ia comparando uns saldos de ocasião nas montras que faziam concorrência quase desleal umas às outras. Lá dentro, os 50% de redução propalados só se estendiam a meia dúzia de monos que nem a Unicef os aceitaria, dados que fossem. Saiu desiludido e retomou o passeio, à procura de alguma pechincha que valesse a pena. Naquela outra multinacional de roupas foi quase que abalroado, pois a multidão, como gafanhotos, engalfinhava-se na disputa do que ainda sobrava. Já ao sair, uma avozinha persignava-se perante a nudez com que alguém despiu uma Eva-manequim!
Ia-se até ao café mais próximo para entabular conversa com algum conhecido de momento quando alguém lhe tocou no ombro, por detrás.
- Desculpa lá, tu não és o Alex?
- Sou sim, ti Man’el, então que o traz por estas minhas bandas?
- Olha, meu menino, ando pr’á ‘qui meio perdido, quase há meia hora, pois não dou com o consultório onde se tiram uns exames e uma prova de força ao coração que o meu médico da Caixa me marcou para esta clínica. Sabes aonde fica o raio desta rua?
Alex esboçou um sorriso e retorquiu:
- Não será uma Prova de esforço, ti Manel?
- Eu sei-te lá dessas coisas. Vais ver que é isso!
- Não se preocupe, eu vou lá com o senhor, como assim os amigos são para as ocasiões. Venha daí.
- Obrigado. Isto d’uma pessoa ir nos oitenta e tais, já num atina lá muito bem. Sabes como é!
- Vai ver que vai correr tudo bem.
Alex recordou aquele lobo-do-mar dos tempos da sua infância. Não havia pincel de Miguel Ângelo ou Rafael que o retratasse tão bem tanto quanto ele o conhecia, pela bravura no mar e pela forma honesta e honrada como sustentou a família numerosa, em tempos de tamanha miséria, e que obrigou à emigração de tantos outros braços, lá da terra, para Brasis, Franças e Alemanhas.
Já na espera do consultório.
- Então tem a “máquina” avariada? – sorriu-lhe Alex.
- A força já não é a que era, filho, mas parece q’inda tenho de correr nuns tapetes, ou lá o que é!? Se fosse no meu tempo, quando era mais novo, eu é que os fazia correr a todos. Já num sou da tua geração. Sempre vivi na nossa terra e o mar foi a minha escola. Quase num sei ler nem escrever mas tam’ém p’ra que é que isso me servia, lá no mar de Cristo?
- Tem certa razão. Mas os tempos também eram outros e a fome obrigava a sair mais cedo da escola …
- Sabes, eu conheci-te de pequenino. Eras cá um traquina, tinhas um ar de franzino mas eras bom menino. Parece que te estou a ver a bater nuns godos e com o resto da canalha toda, atrás de ti, a cantarolar o S. João, nuns testos velhos. Já naquela altura tinhas esse jeito pr’ós cantorios e p´rós órg’os. O meu é que parece cansado!
- Acha que sim? Como adivinhou a cigana, as linhas das minhas mãos tinham umas curvas esquisitas – retorquiu Alex – Cada qual já vem talhado para a vida que há-de levar!?
- Não acredites nisso. Cada um deita-se na cama que faz!
- Talvez tenha razão.
Pois eu nunca mais me esqueci do senhor. Parece que o estou a ver, a chegar ao cais naquela catraia vermelha, todas as manhãs. Quantas vezes me deu uma e outra faneca que eu fazia intenção de frisar bem à minha mãe que tinha sido da parte do ti Manel e que aquela era para fritar, só para mim.
- Sabes que eu tinha bom coração. Não era como alguns pescadores e mestres que eram uns somíticos. Queriam o céu e a terra. Lembravam-se lá dos pobres!
- Oh ti Manel, aquilo dantes devia ser mesmo miséria, não?
- Passaste-a lá tu, menino. Se soubesses o que foi fome. O que valia era o mar, quando ele nos deixava lá entrar!...
- Conte.
- Olha, eu, os falecidos João do Pão, o ti Emílio, o Alfredo da Mouca, o João do Frente, o Rogério, o Li e o filho, o João Careca – qu’inda está vivo – o David, o “Lunetas”, o falecido Zé da Lucas – que Deus o tenha em eterno descanso que era também muito bom home – e tantos outros, esses é que sabem o que foi passar larica!
Quando íamos largar, conforme o tempo deixava, naquelas catraiazinhas de quatro remos, ou numa ou outra maior que levava sete homes mais o mestre, nós é que sabemos o que amargurámos naquele mar de Deus. Bem razão tinha o Zé da Lucas, ao chamar ingnorantes a esses ministros dum raio! Como é que a terra ‘inda há-de ter pescadores c’o a barra naquele estado, vão sustentar-se do ar e vento?
- E depois como é que era? – Indagou Alex mais curioso ainda.
- Olha, as redes ficavam lá mais duas ou três noites e, geralmente à terceira noite, nós íamos alá-las. E tornava-se a largá-las se o mar estivesse calmo. Se estivesse maresia, trazíamo-las p´ra terra. Depois o peixe era rematado lá no cais. Naquele tempo ‘inda as raias ero a dez mil reis!
- Mas como é que a campanha se reunia para ir para o mar?
- Tínhamos o moço dos seus catorze anos, acompanhado do pai ou da mãe, ele é que nos vinha acordar a casa e à restante da campanha. Os moços recebio meio quinhão até chegarem a homes, já pelos seus vinte anos. O mestre, de véspera, avisava que “amanhã vamos às rascas”. Atão, a campanha trazia a vela, a ustaga – um tipo de roldana –, o balde das chamas, – uns paus piquenos que se metiam nuns buracos para fixar os remos ao barco –, o cabo grande ou poitada, – para se dar fundo e parar a catraia no mar –, a cesta do mestre com agulha, – a bússola –, o lampião com vela pr’a se ver de noite. Roupa do corpo – quem a podia ter! – Era de japona, avental de lona que era curada com óleo de bacalhau, o suerte, – boina oleada – a …
Entretanto, a assistente do consultório chamou.
- Sr. Manuel da Silva … de Esposende. Entre para aqui para este gabinetezinho e espere um pouco.
(…)
Passada quase meia hora.
- Então, custou muito? – perguntou Alex.
- Cala-te, menino, eu até fiquei invergunhado quando a moça me quis rapar os pelos do peito e me pôs cá uns fios inléctricos na barriga que eu até punsei mal, pr’a que raio era aquilo!? Depois amandou-me para um tapete que começava a rolar mais depressa que as pernas e quase que me deu o bafo, parece que estava a subir o S. Lourenço e os raios de todas as caretas dos demónios do órgo da matriz a puxarem-me p’ra trás!... fôda-se que caiso desmaei no consurtoro …
- Não se aflija. Isso é igual p’ra todos nesse exame da Prova de esforço. Vai ver que ainda vai poder correr a maratona!
- Sabes do que m’alembrei?
- Diga.
- Quando íamos aos figos ao Sebastião: fugíamos que nem ratos que o hóme era tolo quando nos apontava a caçadeira de chumbos!...
(…)
A caminho da camionete.
- Olha que até foi rápido, só não sei ao que vinha, mas já passou. Agora tenho que pegar a caminheta do Linhares, ali na estação, mas já nem sei p’ra que lado é!?
- É já ali. Eu vou consigo.
- Mas como te estava a contar… aquilo, para vir p’ra terra, num era fácil. Se o vento fosse leste ou sueste não convinha muito porque empurrava a catraia p’rá sepurtura do mar. Em cada costura da vela tinha umas rises que, quando o vento era demais, a vela enrodilhava-se toda e era um “Ai Jasus”. Lá tinha que ser à força dos remos – alguns de nós tínhamos sempre as manápulas cheias de bolhas! – três de cada lado e o mestre, à ré, como hóme de leme.
- Ainda se lembra dessa malta do seu tempo?
- Atão num lembro, e que homes esses! O finado Laguna velho, o ti Américo, o Manel Libra, o Manel da Fanada, o Tóne Tuta, o Trocato, o João do Pinto, o Manel Libano, o Feliz, o Miguel, o Chapuz, o Marcelino Cavalas, o Abilo Calica …
- E lá no cais?
- Aquilo, quando o S. Pedro ajudava, era peixe de toda a espécie. Nas rascas vinham: raias, redobalhos, lagostas, lavagantes, caranguejos, peixe-sapo … Ao anzol, ero os congros e o espinhel. Nas linhas da faneca, de anzol pequeno, era uma farturinha. Depois havia as redes da lagosta, ou rascas de pedra, largadas em cima das pedras, no fundo do mar. Os cofros para o polvo, navalheiras, peixe-rosa, camarão, peixe-espada – que era pescado à mão com anzol e isco de marisco ou sardinha, ao pôr ou ao nascer do sol. As gigas de sardinha eram vendidas por lotes e cada uma deveria ter à volta de umas duzentas sardinhas! Mas a sardinha era só de uma safra. Mais tarde, aparecero os tresmalhos de três redes e as redinhas pr´á faneca, badejo, pintas, robalos … agora é tudo mais fácil com os motores. Mas tamém te digo, como isto está, nem vale a pena ir ao mar, pr’a lá ficar!
- E as catraias não vertiam água nem inundavam com tanto peixe?
- Sabes lá tu! Quando o mar era alto, aquilo até podia dar para o torto e era preciso ter um hóme só pr’o bertedoiro, para escoar a água das cavernas. Era uma iscuridão tremenda, só alumiada pelo lampião de vela, suspenso num remo ou na vara grande, junto ou dependurado no mastro que servia tamém prá nossa localização. Tinha mar de trinta a carenta jardas de profundidade!
As redes eram assinaladas com uma bóia marcada e bandeira próprias da embarcação do mestre mas, às vezes, aquilo também era uma ladroaje do raio, mas a gente acabava sempre por saber quem foro os gatunos … cando num ero as traineiras e um ou outro arrastão que nos davam cabo delas.
Cando a campanha chigava à terra, depois da lota, partia-se o dinheiro, em casa do mestre, sentados no xão, com feijões, pois poucos sabio ler. Se o dinheiro era em notas daquelas grandes – atão as de cem mil réis parecio quase um lençol! - Ia-se ao ti António do sul, ao Loureiro, à Pastilha, à Siloca, p’ra se trocar. Vida de cão, aquela!
(…)
Chegados à estação de camionagem.
- Pronto, ti Manel. Já cá está. A que horas parte a camionete?
- É às seis, mas como é a do desdobramento e com todas aquelas voltinhas por Barcelos e c’o a gente da feira a entrar e sair, só lá pr’as sete e meia é que devo chegar a casa! Vou ver se a Maria me deixou o presigo ou o resto da caldeirada …
- O quê? A carroça anda só a 30 à hora? Mais valia ter alugado a do Man’el Louceiro, ao menos a “gasolina” era à borla e os “fumos do escape” ainda serviam para adubo!
- Bem podes rir. Na era dos foguetões e dos TGVezes aquilo mais valia ir pró museu …
- Um abraço e até à próxima. Não se preocupe que a “máquina” ainda vai durar uns anitos!
- Deus te oiça, filho, Deus te oiça. Obrigadinho pela ajuda.
- Vá com Deus e faça boa viagem.

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