quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Um Natal diferente


Um Natal diferente

Só quem está fora da mãe-pátria pode avaliar, por si, o quão custoso é passar esta época festiva fora dos seus familiares e amigos; que o digam os nossos emigrantes, que o digam todos aqueles que nas mais diversas circunstâncias, algum dia, tiveram de comemorar o nascimento do Deus-Menino fora do seu torrão natal.

Retomando palavras do jornalista: “Para o milhão de combatentes que, ao longo de treze anos de guerra colonial, foi deslocado para África, o Natal constitui uma das páginas mais angustiantes das suas comissões, um trauma com data previamente marcada, um momento simbólico com raízes profundas na sua origem, na sua educação, na sua cultura, traduzindo o sacrifício físico e psicológico, a tristeza do afastamento familiar e a dor da guerra, em alegria do dever cumprido, por amor à Pátria, na ânsia do triunfo, com dádiva de suor e sangue” [1]. Também connosco não foi excepção.
           Tentando colmatar, de alguma forma, a reunião à volta de cada uma das nossas famílias na Metrópole nesta noite santa de Dezembro de 1972, também nós, a família da ÔNZIMA, nos unimos para a comemorar. O rancho foi melhorado com a carne de uma pacaça que o capitão e os alferes Nunes e Coelho tinham abatido para a ocasião; as grades de cerveja foram duplicadas; embora dificilmente, também lá se arranjou o bacalhau para a consoada; o whisky foi distribuído pelo pessoal; o vago-mestre teve que passar diplomas suplementares a tantos outros cozinheiros de ocasião que queriam demonstrar os seus dotes na cozinha, confeccionando e disputando especialidades, neste ou naquele bolo, que ornamentariam a longa mesa da messe desse dia; enfeites vários e velas de ocasião, davam o ambiente próprio àquela noite onde, disfarçadamente, ainda escorria, neste e naquele rosto, alguma lágrima de saudade que, teimosamente, fazia lembrar cada um dos seus. Era noite de consoada.
No fim do repasto e já bem regados, era a ocasião para a apresentação da Parada de Estrelas improvisada mesmo ali à mão. Foi o furriel Lopes, um alfacinha de gema, que deu o mote, com dois ou três fados corridos que logo tiveram o coro acompanhante de quantos ainda recordavam a letra. De imediato, o furriel Cunha (de saudosa memória) perito em letras e canções de intervenção (nesta altura a PIDE parecia andar arredado do mato) ripostaria com a declamação do Pedro Soldado, de Manuel Alegre e Adriano Correia de Oliveira:

Já lá vai Pedro Soldado
Num barco da nossa armada
E leva o nome gravado
Num saco cheio de nada
Triste vai Pedro Soldado

Ainda as palavras trovejavam no ar quando outro soldado madeirense entrava na competição, cantarolando, Paco Bandeira, no Lá longe onde o sol castiga mais…

Quem nunca viu
Quem nunca andou a combater
Não dá valor nem faz ideia o que é sofrer
Ter de matar
Para não morrer
Saber sofrer sem chorar
Saber chorar a sorrir
Lá longe
(…)

Para não ficar atrás, o alferes Coelho, lá foi trauteando um fado coimbrão, a Samaritana, provocando um disfarçar de olhos vidrados aqui e ali. A noite não ficou completa se os meus camacheiros, liderados pelo Emanuel e pelo “Caganeira”, vestidos a rigor com umas toalhas de ocasião e com as damas improvisadas, não rematassem com o Bailinho da Madeira, pondo toda a malta a dançar e a fazer mais depressa a digestão. Na parte que me toca, lá me fui revezando na viola e no acordeão, ajudado por um sexteto rítmico, no matraquear dos talheres nos copos. Já a noite ia alta, ainda nos ecoavam nos ouvidos as últimas estrofes do nosso Malhão. Era hora do descanso do guerreiro e, nessa noite, até o corneteiro teve de fazer horas extraordinárias.

 

 

 




[1]  RIBEIRO , J., Marcas da Guerra Colonial,  Colecção: Campo da Memória-2, Ed. S.A. 1999, p. 225.

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