quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Ca - A instruçãop. 6


Cap. 6

A instrução

A nossa instrução distribuía-se por quatro áreas: 1) teorização e manuseamento das diversas armas e prática de deslocação pelo mapa na diversidade dos tipos de terreno e a que se juntava a Ordem Unida [1]; 2) carreira de tiro, onde se treinavam as mais variadas armas e que nos deixava surdos para o resto da semana; 3) exercício físico, sobretudo as corridas de meio fundo e as passeatas[2] pelo pórtico, galho, corda, muro, rapel, slide, corrida de obstáculos e a famigerada lagoa[3], entre outros; 4) semanas de campo com movimentações noturnas e diurnas em que nos presenteavam com algumas rações de combate, numa engorda forçada ao nosso “cabedal”, por umas não sei quantas mais cartucheiras, granadas, G 3, tenda, poncho e colchão de campanha, que nos iam arreando a cada passo, de forma a experimentarmos a vida de burros, já que mais parecíamos bestas de carga.

Confesso que não me senti tão mal assim nas provas físicas, até me alcunharam de “perna eléctrica”, pois em velocidade e resistência ficava quase sempre lá na frente do pelotão; o mesmo se diga no tiro, onde, apesar do chinfrim dos balázios, até conseguia discernir algum som musical. Idem na parte teórica dos testes, tipo código de instrução hodierno, sistema americano, onde tínhamos de acertar em uma de quatro respostas, algumas de tal forma ambíguas que às vezes nem o Espírito Santo de orelha ou a lotaria ajudavam grande coisa!...

Na Ordem Unida, onde se apurava a forma de marchar e outros movimentos de coordenação, nunca havia rotina. Desde o  “ombro… arma”,  “frente… marche”, “alto!”, “descansar … arma”, e outras mais ordens em parada, já fora do quartel, a caminho de uma qualquer instrução ao ar livre, aquando da passagem de uma beldade de ocasião, o chico do alferes sibilava: “alto!”, “apresentar…arma”. Assustada a moça e fugindo a sete léguas, logo a marcha prosseguia para “passo de corrida” pois os bravos de pelotão monodiavam já um Solesmes feito gregoriano de ocasião:

 

O cadete é o melhor da tropa

Quando lá não está mais ninguém

As mulheres até ficam loucas

Co’as estrelas que a sua farda tem.

(…)

 

Até que se fazia tempo de voltar á Tapada para mais umas incursõezitas feitas de orientação mapa-bússola, tipo pady paper, assustando aqui e ali veados, gamos e javalis à solta, resquícios aos tempos de D. João V e que fizeram as delícias de monarcas que, alojados no Convento, se queriam dedicar à caça.

         Ao almoço, era tempo de saborear uma frangalhada com arroz à caril, ou outras ementas de engorda, nas mesas gigantescas de mármore do longuíssimo refeitório abobadado da messe e caiado a imaculada brancura.

         Na instrução da tarde seguia-se outra dose industrial, tirando-se azimutes a tudo quanto era sítio ou cota para, logo mais, se bombardear em morteiradas um pseudo-inimigo, alojado algures em morro de aldeia vizinha, mas que dele só restariam umas reencarnações de passarada assustadiça que debandava para outros sítios, receosa talvez que a 3ª Guerra Mundial começasse por aquelas paragens! E em passo de corrida lá voltávamos ao quartel-convento para confessarmos os nossos pecados por tanta “matança” feita. Não contentes com uma guerrazinha menor, logo nos prometiam, para o dia seguinte, um concurso de pesca desportiva nos “perfumes” da lagoa, acossados por bala real ou granada lançada por instrutores sádicos e dementes; em alternativa, éramos convidados a uma familiarização mais chegada ao galho, pórtico, rapel, slide, túnel, corda, salto de obstáculos e coisas do género, acabando este e aquele cadete numa visita forçada à enfermaria, co, relatório a transparecer um “excesso de zelo” no treino a decorrer! Éramos ainda os “filhos de um deus menor”. O que nos reservaria o Olimpo do Ultramar?

         Após a instrução da tarde tínhamos uma lufada de ar fresco fora do quartel, no que aproveitávamos para atacar os cafés da vila em “golpes de mão” que equilibravam as nossas proteínas, já que a comida do rancho mais parecia condimentada a soda. De soslaio, lá se “iam tirando as medidas” às poucas beldades de ocasião que, já calibradas com tanto mânfio e todos do mesmo clube, “davam às de vila Diogo” ao ouvirem alguma promessa de eterna fidelidade para pertencerem ao rol das casadas, em namoros relâmpagos quanto poderiam ser os de cada instrução. Sonhos nossos que também só duravam enquanto não fôssemos acordados pelo toque de recolher ao quartel.

Decorreram assim os meses da recruta e da especialidade, findos os quais, a 27 de Novembro de 1970, recebemos os galões de Aspirante a Oficial – uma estria diagonal dourada em fundo preto – passando agora a estar mais atentos a corresponder às continências do que, antes, a tentar evitá-las.

         Embora garbosos de um estatuto que há seis meses atrás era só “para ver por uma canudo” pelas dificuldades passadas, não imaginaríamos talvez o que nos adviria mais tarde pois que cada rubrica e autorização nossas eram um atestado de co-responsabilidade a assumir, não só perante os graduados inferiores, classe dos sargentos e praças, mas sobretudo perante os oficiais superiores.



[1]  Formação e movimentação apeada uniforme de uma unidade militar à voz de um comando.
 
[2]  Tom jocoso pelos quais, dada a sua dificuldade, eram conhecidos estes obstáculos; na verdade, um salto mal calculado no galho - árvore com  um  ramo descascado para o qual o instruendo se teria de arremessar de uma certa altura e a determinada distância deste por forma a ficar nele suspenso - ou o medo e o tremor das alturas quando no pórtico - pilares de cimento dispostos em forma de quadrado com uma largura  de menos de 40 cm e vários metros de comprido e a cinco metros de altura do solo, que o cadete teria de percorrer - e no muro - parede mural encimada em feitio ovoide e que separava zonas específicas da tapada de Mafra, mas de alguma extensão e a x metros de altura, que o instruendo teria não só de atravessar, como numa fase mais adiantada tentar acelerar -, punham em risco a integridade física de cada um de nós.
[3]  Charco de dimensão e profundidade variáveis onde proliferava a mais diversa imundície que os cadetes teriam de transpor, sobretudo de noite e no meio de um intenso tiroteio – às vezes com bala real ! – iam rebentando, à mistura, granadas e de que resultavam, muitas vezes, acidentes, alguns até mortais, e que faziam o gáudio de certos instrutores sádicos e o medo inconsciente e bem real dos instruendos.

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