sexta-feira, 22 de julho de 2011

O exame


O exame (X)



         Alex andava um tanto preocupado, como Director de Turma, em tentar acompanhar os seus alunos para as provas de exame de Língua Portuguesa e Matemática. Ia perguntando aos colegas destas áreas disciplinares se os alunos estariam preparados.

         - S’tôr, no seu tempo também faziam exames a Língua Portuguesa e Matemática? – Questionava o mandrião do Bruno, cábula nº 1 da turma.

         Sem esperar resposta, atacou logo outra aluna:

         - É, s’tôr – preocupava-se a Isabel – só para o Gil Vicente temos que estudar a Barca do Inferno toda!

         - Só isso? – Brincou Alex – é bom que conheçais todos os diabretes que lá entram. Já agora, já assististes a alguma encenação desse Auto da Barca?

         - Eu já o vi num programa da televisão – assentiu a Cátia.

         - Por que é que não sugerem à vossa professora uma encenação feita por vocês? – Personagens não faltariam nesta turma … deixem cá ver …

         Olharam-se uns para os outros e começaram a rir-se. O “Mantorras” perito em todo o tipo de fintas, sobretudo quando fazia um manguito às aulas, aproveitou para espicaçar o Rafael:

         - S’tôr, um que fazia bem o papel de Belzebu era o Ráfa!...

         - E tu, fradeca – ripostou o Ráfa – a ti só faltava lavarem-te os pés e porem-te nos altares!

         Risada geral. Mais apaziguadora, a delegada procurou interceder pela turma:

         - Desculpe lá, s’tôr, nem toda a turma se portou assim tão mal, durante o ano. Olhe que as meninas até se comportaram mais ou menos!...

         - Queres ver a santinha – elogiou-a o Daniel – vós sois todas é umas escovas! Já agora, tu fazias bem na peça era de alcoviteira!...?

         - Pronto. Acabou o paleio – rematou Alex. Vocês sabem lá o que são provas de exames e logo desde a 4ª classe. Só vão acreditar quando se virem nelas e não terem tempo para as fazer!

         - Oh s’tôr, no seu tempo também passava tudo? - Gozava o “Bigodes” pois já desfazia a barba desde os 13.

(…)

Alex fez atrasar o relógio do tempo.

         Terminada a 4ª classe, alguns dos colegas de escola haveriam de começar a procurar trabalho, para a ajuda em casa. Uns, ainda como moços, na arte de trolha. Outros, das freguesias de Góios e Marinhas, seguiriam a lavoura. Os filhos dos pescadores da terra, experimentados já na pesca do rio, no tresmalho, na solha, no robalo, na tainha e na estacada da lampreia, iriam com certeza continuar a faina do mar. Só mesmo uma meia dúzia se aventurou nos estudos, mas para lá chegar, havia que passar-se no exame de admissão ao liceu.

Como a sua preparação exigia uns conhecimentos extra, os alunos complementavam a aprendizagem da escola em casa de alguns professores especializados. Supostamente preparados, também Alex lá se encaminhou, com alguns dos seus conterrâneos, para as provas de acesso, no liceu da Póvoa de Varzim. Primeiro, foi a Prova escrita. Dois dias após, a Prova oral. Nesta última, ficara mais descontraído quando no júri conheceu gente da terra.

Em pleno exame.

- Então diz lá, meu menino – perguntou-lhe um dos jurados – quais são as capitais das Províncias de Portugal?

 Alex despejou o saco da sua memória fixiva e, num abrir e fechar de olhos, respondeu, acertadamente, ao quesito, só trocando as capitais das Beiras, mas nada que provocasse litígios regionais.

- Sim, senhor, vê-se que estudaste. Agora aqui o Sr. Doutor vai fazer-te outra pergunta, está bem?

Desta feita, um mais que mal humorado professor, de óculos dependurados no nariz, cabeleira à Beethoven e cachimbo à Kaiser, lançou-lhe a pergunta nº 2 da cartilha, fustigando-o, ao mesmo tempo, com uma baforada de fumo mais denso que o nevoeiro da Póvoa:

- Ouve lá, vais dizer o curso do rio Tejo, desde a sua nascente até à foz. Vê se cantarolas as povoações todas e que não falte nenhuma!

Um tanto amedrontado pela fisionomia esquisita do professor, coçando um dos joelhos, por baixo dos calçõezitos, e fazendo esticar os suspensórios com a outra mão, tentou perscrutar no mapa de Portugal onde ficava o rio Tejo – os rios vinham marcados a azul. Em cima da mesa, uma ampulheta de vidro vazava um fio de areia para o cone de baixo, indicador do limite de tempo da Prova oral. A letras gordas, lá visionou a capital LISBOA e o tal de rio Tejo. Depois, foi só fazer desaguar o percurso inverso. Apenas se “afogou” numa localidade, Salvaterra de Magos – tinha logo que esquecer-se dos reis magos da catequese! - Mas o essencial fora respondido.

Foi ainda inquirido sobre as serras do Caldeirão e Montejunto e mais este e aquele percurso das Linhas de Caminhos-de-ferro, assinaladas no mapa com sequências de dois tracinhos pretos paralelos e cruzados e fáceis de detectar a olho nu. Sobre estes últimos, uma hesitação no Entroncamento ia-lhe custando caro, mas não terá incomodado de todo o ministro dos transportes, lá em Lisboa. Reposta a povoação nos seus devidos trilhos, os comboios lá continuariam a fazer o seu percurso, indiferentes à ignorância momentânea. Acabou por merecer um aceno positivo do mal-encarado professor.

Agora vinha a cartilha da Matemática.

- Então, és bom nos problemas? - Perguntou-lhe o professor de barbas.

- Assim, assim! Mas gosto mais dos milhões e dos volumes dos sólidos…

- Vamos lá ver isso. Vais ali ao quadro e escreves o seguinte número: 2 biliões, novecentos e quarenta e sete milhões, seiscentos e oito mil e …mais quatro unidades.

Pegando no giz, Alex lá se desembaraçou: 2947.608.004. O professor olhando de soslaio a solução, emendou:

- Olha lá, não te parece que falta nada?

- Ah! O pontinho nos biliões, Sr. Professor! 2.947.608.004!

- Ora aí está! O pontinho é mais que um simples pontinho, pode ser uma fortuna, sabias?

Por fim, veio a prova de Português. Desta feita, sentiu-se como peixe na água pois o examinador era da sua terra.

- Olá, por aqui, meu maroto? – Brincou o conterrâneo.

- Sim, Sr. Doutor, a ver se entro no Colégio Infante de Sagres.

- Claro que vais entrar, claro. Estás a fazer uma bela prova, sim senhor. Gostas de ler e escrever?

- Mais ou menos …

- Olha, vais ler então o trecho do teu livro, na página 47, está bem?

Calhara-lhe a fábula da Raposa e da Cegonha. A sua voz era pausada e sublinhada, parando em cada vírgula e sobretudo dava particular ênfase às interrogações. Preocupou-se até em imitar, guturalmente, a manhosice da raposa e deu à cegonha a primazia do diálogo, merecendo por isso a admiração do docente.

- Muito bem, menino, muito bem!

Seguiu-se a análise morfológica e sintáxica do texto e a declinação dos verbos Ver e Ter, com as rasteiras já habituais, se eram com um único é ou dois e se os primeiros tinham ou não carapuça – acento circunflexo –, prova superada na perfeição, por tanto ter praticado nas aulas de preparação.

- Óptimo. Podes sentar-se.

No final da prova, dirigiu-se para casa, na camioneta da Viúva, de Viana do Castelo. No trajecto, foi saboreando o lanche da sêmea com marmelada que a mãe lhe guardara. Estava eufórico. A paisagem da Estela até Apúlia e desta até Fão voou-lhe pelas vidraças e, coisa rara, nem chegou a enjoar até à vila. Parou em frente à Nélia e, de prenda, a mãe ainda lhe comprou um pirolito p’ra beber e mais um guarda-sol de chocolate!

Dois dias depois, a expectativa estava virada para a lista dos aprovados ou reprovados, fixada no átrio do liceu, o que mereceu nova ida à cidade do Cego do Maio, na charrete do Linhares. Ansioso, voou para as pautas.

(…)

Nº 1 – Aarão Mendes da Silva – APROVADO (a tinta azul)

(…)

Nº 34 – Alberto Simões Fontaínhas – REPROVADO (a tinta vermelha)

- Sou eu a seguir – murmurou com os seus botões. O olhar esbarrou-lhe no seu nome.

         Nº 35 – Alexandre da Silva PachecoAPROVADO (a tinta bem azul)

         - Passei!!! Passei, mãe!...

         Dera dois pinotes no ar e quase a provocarem-lhe cólicas por tão grande contentamento.

Recebera de presente uma caneta de tinta permanente, cor azul e que tinha custado sete e quinhentos!

(…)

- S’tôr, já tocou p’ra sair – avisou a delegada de turma.

- Desculpai, não ouvi. Preparai-vos bem. Podeis ir. Até à próxima.

- Não se esqueça, S’tôr!?










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