sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Livro da C.C. 3411 "Também eu estive lá..."

Nota: o livro "Também eu estive lá...", foi prefaciado por uma grande figura e eminente doutorado em línguas românicas, sobretudo no Latim e Grego. Foi um grande poeta, sob o pseudónimo de Castro Gil, magno orador, ilustre conferencista e duplamente meu professor, em alturas distintas do meu percurso académico. E sobretudo meu grande amigo.
R.I.P.

"A modos de prefácio
São os diários e as memórias preciosos auxiliares da história. Não obstante a sua confinação ao indivíduo ou ao grupo, a estes aspectos aparentemente parcelados e de âmbito restrito compensa-os abonadamente a proxémica da experiência e da autenticidade, indispensáveis para narrativas de maior abrangência em relação ao passado.
O presente volume, que o Dr. Lino António da Silva Martins Rei intitulou de Também eu estive lá, pretende reviver, ou melhor reavivar memorial e emocionalmente, passadas quase três décadas, as vicissitudes, os sacrifícios, o espírito de camaradagem, de aventura e devotamento mútuo que rodearam a sua comissão de serviço no Norte de Angola, desde a entrada para o Curso de Oficiais Milicianos, no quartel de Mafra, em 6 de Julho de 1970, à sua estada no do Funchal em trabalho de adestramento de recrutas, ao retorno ao Continente para a Instrução de Aperfeiçoamento Operacional em Santa Margarida, até finalmente ao embarque da Companhia no Vera Cruz, em 31 de Julho de 1971, rumo às terras do Uíge, donde regressou em 24 de Outubro de 1973.
Este espaço de cerca de 41 meses avulta aqui retrospectiva e sequencialmente reconstituído pelo Alferes Martins Rei, através de um selecto mosaico de recordações e eventos cuja leitura, naturalmente agradável e nostalgicamente tónica, se salpica de congraçante humor umas vezes, outras inopinadamente se larva de angústia e saudade, em contraste com retemperos alegres de forças em convívios eventuais. Oito dezenas de capítulos breves, aqui e além ilustrados com algumas fotografias de velho álbum e vários poemas exorcismadores da solidão e da vida entre os perigos contínuos do mato, entretecem uma espraiada narrativa que, apresentando-se como “síntese do heterogéneo” na definição de Paul Ricoeur, acaba por a enriquecer de episódios que encaixam à maravilha na unidade da obra.
Martins Rei avisa que não quis meter-se por “caminhos de discernimento político” e manteve tal alheamento. No entanto, não lhe minguará certamente razão nas críticas que, longe a longe, vão aflorando a respeito da exploração local do trabalho escravo e na aceitação tácita, pela intromissão musical de alguns comparsas, de bem conhecidas cantigas alvissareiras. Infelizmente para os povos a que se referiam, estas em breve degeneraram em presságios sucessivos de tragédia, que se prolongou por muito mais tempo do que os treze anos do conflito anterior. Descolonização singularíssima, que sob o comando de lunáticos da nossa praça e da estranja, redundou na maior catástrofe da história africana a sul do Equador.
Ainda bem, que Martins Rei passou delicadamente de lado. Portugal, contudo, a quem tantos milhares de expedicionários serviram, é que não pode fazer ouvidos de mercador amnésico e relaxado no cálculo. Há que, através do Estado e do Governo, reconhecer direitos legítimos e incontornáveis àqueles que um dia, arrancados à família e ao labor profissional, foram mandados simplesmente para a guerra, uma guerra donde não desertaram como tantos que a sorte ou os partidos bafejaram, antes donde não poucos voltaram politraumatizados, no corpo ou no espírito quando não em ambos, para a vida inteira.
“A política é a arte de tornar possível o necessário” – escreveu Fernando Henrique Cardoso, Presidente do Brasil. Ora torna-se absoluta e inquestionavelmente necessária a sancionação desses direitos, acabando deste modo com flagrantíssimas injustiças. Martins Rei não intentou, com o seu livro, lançar mais achas para a fogueira. Contentou-se com este polifacetado depoimento de campanha, que se desdobra, por trás de inúmeras peripécias, em comovido “in memoriam” dos que pereceram.
No entanto, saúde-se uma obra que sem dúvida concorrerá notavelmente para manter acesa, ainda que sob a cinza dos instalados no poder ou na reforma, a memória e doação daqueles que merecem superiormente da Pátria, bem mais do que muitos deles.
Amadeu Torres"

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Descongestionando...

Olá, malta da "pesada" - embora agora  com a "velhice" pertençais mais à cavalaria ligeira - está tudo numa de corrida à copofonia ou andais ainda a águas das pedras ?
Pois, já se sabia que a culpa fica sempre solteira e nunca assumis que sois vós que vos desgastais em cervejolas e outros álcoois afins e não ligais puto ao vosso médico de família que vos aconselha simplesmente água da torneira que com esta crise sempre fica mais barata que a engarrafada e que vos havia de provocar gases...
Mas deixemos de brincadeiras e era só para vos dizer que ainda estou vivo embora vá falando para alguns que já estão mais mortos que vivos.
Ah!... Tende um Bom Natal e um Próspero Ano Novo e algumas prendas nos sapatões e de preferência com um prémio chorudo do euromilhões. Mas jogai, "carago".
Um abraço,
LR.
 

quinta-feira, 26 de setembro de 2013

“Contra os canhões…”


 (*) Texto publicado no Jornal “Correio do Minho”, pp 17 de 15/07/2010 (Braga) e seleccionado de entre “as melhores histórias” na rubrica “Conta o leitor” de “Quem conta um conto acrescenta um ponto”.                                              
 
                             “Contra os canhões…” (XVII)

António viu-se mobilizado para a guerra e, com ele, mais uns milhares de mancebos por esse país fora.
Já em Luanda, reencontrara no Grafanil – centro de mobilização geral de Angola – um conterrâneo seu que já tinha começado a sua comissão e aguardava novas ordens, para outros destinos.
- Então, pá, também por aqui? - Admirou-se o Fiúza, de Operações Especiais e a fazer serviço na unidade, enquanto aguardava ida para o Leste.
- Como vês, parece que calha a todos!...
- Olha, a malta só aguarda transporte dos páras e fala-se numa mega operação lá para o Leste; estamos só a afinar as armas…
- Porra, parceiro, isto está assim tão mau?
- Bem, como ainda estás a chegar, será melhor veres por ti. A propósito, para onde vais?
- Sei lá, pá, é lá para o Norte, uma parvónia qualquer…
- Vê que não te calhe a rifa de Nambuangongo, aquilo é fogo da pesada!
- A nossa malta é “tropa macaca” mas o Capitão é dos comandos, nem imagino como vai reagir. Seja o que Deus quiser!
- Boa sorte, a gente ainda se vê por aí. A propósito, sabes quem está na prisa?
- Conta.
- O Salsichas. O gajo pirou-se e andou à porrada com o alferes e pô-lo no hospital!
- E agora?
- Agora, vai alinhar por duas comissões de serviço, se entretanto sair da gaiola!...
(…)
Tentando quebrar a tensão da picada, procurou no bolso do camuflado um cigarro. Entretanto, no transístor do condutor, a Rádio Luanda anunciava manifestações patrióticas no Puto. Um político de ocasião ainda discursava: (…) “A quantos souberam bater-se para que todos possam viver (…) Por isso, nesta manhã dos heróis prestamos sentida homenagem aos varões assinalados que fizeram história no Ultramar português” (…)

Que raio fazia António ali, a milhares de quilómetros da sua terra?
A seu lado, o furriel progressista reavivara poemas de Manuel Alegre pois os “ventos” começavam a soprar outras trovas.
Ouviu-lhe:

Pergunto ao vento que passa
Notícias do meu país
O vento cala a desgraça
O vento nada me diz.

Mas há sempre uma candeia
Dentro da própria desgraça
Há sempre alguém que semeia
Canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
Em tempo de servidão
Há sempre alguém que resiste
Há sempre alguém que diz não.

Afinal de que lado estava António?

Um cabo alfacinha aproveitou a boleia poética e trauteou um dos tops da altura, pelo Conjunto de Oliveira Muge, de Ovar. A canção A Mãe que rivalizava com o Le Ruisseau de mon enfance (Adamo), Caracóis (Amália), Delilah (Tom Jones), Hey Jude (Beatles), Nights in White Satin (Moody Blues) e Congratulations (Clif Richard), no Eurofestival desse mesmo mês de Abril.

A MÃE
Mamãe, tu estás tão longe de mim
Mamãe, sinto que estás a chorar
Não chores a minha ausência
Que um dia hei-de voltar
Não chores e pensa agora
Que o tempo passa depressa
Pede a Deus que te tire esse tormento
Que te abrande o sofrimento
Desse teu formoso rosto
Mamãe, não chores, eu volto, Mãe.

A fila indiana das Berliets que os conduziam para o Uíge nunca mais chegava. Terra batida, barrenta, pegajenta de mosquitada. E subiam, e desciam …
Pelas cinco da manhã, ao fim de doze horas daquela tormenta, sonolentos e alquebrados, feitos manteiga por tanto solavanco, alguém berrou da primeira viatura:
- Eh, Companhia, chegamos! Toca a descer e a perfilar para a revista.
Como morcegos assustados, ainda meio sonâmbulos, as viaturas militares iam vomitando toda aquela “carne para canhão”, preparada de armas e bagagens para umas férias, mato fora, sabe-se lá por quanto tempo.
A nascente, a aurora avermelhada aproximava-se a passos de gigante e olhava curiosa aquela tropa maçarica que nem imaginaria ao que vinha nem por que viera.  À porta de armas do Batalhão, a sentinela tivera talvez o pesadelo maior da sua vida:
- Meu Sargento, chegaram os Comandos!
O Sargento de Prevenção, chateado por o interromperem do passar pelas brasas e farejando ao longe aquelas fardas engomadas, logo lhes “tirou as medidas”. Acabou por berrar para o praça:
- Quais Comandos, minha besta-quadrada, são os maçaricos do Puto que vão p’ra Mucaba. Vai acordar o nosso Tenente e Oficial de Prevenção .
Uma hora depois, o Comandante da Unidade, acompanhado do Oficial de Prevenção, aparecia à porta de armas:
- Atenção, Companhia, apresentar armas! - Grunhiu o Capitão.
Um estalejar de mãos nas G3, acompanhando os coices das botas dos soldados no alcatrão da parada, ressoaram quartel dentro, substituindo-se ao toque de alvorada do corneteiro. Dois boxers, contrariados por invasão do território, galgaram a porta de armas, arreganhando os caninos àqueles intrusos. Finalmente, o Comandante, um tal de Tenente-Coronel, quiçá ainda meio ensonado pela ressaca do dia anterior, correspondeu, contrariado, à ordem de comando e batendo pala aos homens, autorizou o Capitão a fazer descansar a Companhia.
- Descansar... armas!
O Tenente-Coronel Amoroso ladrou as boas-vindas aos recém chegados.
No seu discurso patriótico apelou a dar cabo de todos os turras na zona e prometia até umas feriazinhas surpresa no Puto, a quem lhe trouxesse algum troféu como prova.
- “ (…) Portugal é um Império e Angola faz parte dele – ressoava ainda o seu vozeirão, assustando a passarada que esvoaçou em momento tão solene – por isso, soldados, sede dignos da farda que usais como os bravos heróis de Pidjiguiti, Mueda e Baixa de Cassange” – rematou.
A Companhia haveria de deslocar-se ainda uns bons 40 quilómetros mais para Norte.
No trajecto, o transístor cantarolava:

ANGOLA É NOSSA

Ó povo heróico português,
Num esforço estóico outra vez
Tens de lutar, vencer, esmagar a vil traição!
P’ra triunfar valor te dá o teres razão
Angola é nossa - gritarei -
É carne, é sangue da nossa grei,
Sem hesitar p’ra defender,
É pelejar até vencer!
Ao invasor castigar coo’o destemor
Ancestral, deter, destroçar!
E gritar: Angola é nossa
É nossa, é nossa
Vencer, escorraçar!
Angola é nossa
Angola é Portugal!...

Desde então, António sentira que a confiança que o animava se começava a esvaziar como um balão.
Seriam os novos senhores da guerra!

 

MAX

 

 

segunda-feira, 15 de julho de 2013

Madeira - BII 19 Quartel de instrução à recruta - 1970


Lino Rei Rei

 " ... o pelotão, em semicírculo, aprendia a montar e a desmontar a G3, ajudado pelos então cabos milicianos. A páginas tantas:
- Meu asp'rante, dá licença de pôr em cima dos pés ? - Solicitava o recruta.
Intrigado, o aspirante, e julgando tentando tratar-se de uma qualquer brincadeira, fez ouvidos de mercador.
Insiste o instruendo:
... - Meu asp'rante, dá licença de pôr em cima dos pés ? - Repetia o homem.
Olhando-o de soslaio, o oficial lançou-lhe umas gáspias surdas de reprovação, pois não estava já a gostar da gozação.
E pela terceira vez ainda:
Meu asp'rante, dá licença ... de pôr em cima dos pés ? Quase choramingava o aspirante a soldado.
Risota geral, meio abafada, de muitos dos instruendos.
Vociferou-lhe então o aspirante-miliciano e chefe daquele grupo:
- Ó nosso, você é parvo, ou quê ? Se é estúpido vá depressa apresentar o certificado na Psiquiatria e arrede pés deste grupo. Seu pedaço de urso, como é que quer engalhar-se em cima dos pés, se estando já a pé ainda quer pôr-se em cima dos pés ?
O nosso homem e já nem querendo ouvir o final da reprimenda, desatou a correr ... para as latrinas !...
Quando chegou, dez minutos após, e ainda meio lacrimejante, ajoelhou-se junto ao chefe de grupo e com a voz entrecortada:
- Obrigado, Meu asp'rante. Agora, Já estou todo aliviadinho...
Risota geral a que o aspirante também alinharia.

P.S. Na Madeira havia certas expressões populares carregados de sentidos ambíguos e que só com o tempo se aprenderia o seu real significado.
Obs. Contexto adaptado In "Também eu estive lá..." livro sobre a C.C. 3411 de Lino Rei (ex-alferes).