Um
Natal diferente
Só quem está fora da mãe-pátria pode avaliar, por si,
o quão custoso é passar esta época festiva fora dos seus familiares e amigos;
que o digam os nossos emigrantes, que o digam todos aqueles que nas mais
diversas circunstâncias, algum dia, tiveram de comemorar o nascimento do
Deus-Menino fora do seu torrão natal.
Retomando palavras do jornalista: “Para o milhão de
combatentes que, ao longo de treze anos de guerra colonial, foi deslocado para
África, o Natal constitui uma das páginas mais angustiantes das suas comissões,
um trauma com data previamente marcada, um momento simbólico com raízes
profundas na sua origem, na sua educação, na sua cultura, traduzindo o
sacrifício físico e psicológico, a tristeza do afastamento familiar e a dor da
guerra, em alegria do dever cumprido, por amor à Pátria, na ânsia do triunfo,
com dádiva de suor e sangue” [1].
Também connosco não foi excepção.
Tentando colmatar, de alguma forma, a reunião à volta
de cada uma das nossas famílias na Metrópole nesta noite santa de Dezembro de
1972, também nós, a família da ÔNZIMA, nos unimos para a comemorar. O rancho
foi melhorado com a carne de uma pacaça que o capitão e os alferes Nunes e
Coelho tinham abatido para a ocasião; as grades de cerveja foram duplicadas;
embora dificilmente, também lá se arranjou o bacalhau para a consoada; o whisky
foi distribuído pelo pessoal; o vago-mestre teve que passar diplomas
suplementares a tantos outros cozinheiros de ocasião que queriam demonstrar os
seus dotes na cozinha, confeccionando e disputando especialidades, neste ou
naquele bolo, que ornamentariam a longa mesa da messe desse dia; enfeites
vários e velas de ocasião, davam o ambiente próprio àquela noite onde,
disfarçadamente, ainda escorria, neste e naquele rosto, alguma lágrima de
saudade que, teimosamente, fazia lembrar cada um dos seus. Era noite de
consoada.
No fim do repasto e já bem regados, era a ocasião para
a apresentação da Parada de Estrelas
improvisada mesmo ali à mão. Foi o furriel Lopes, um alfacinha de gema, que deu
o mote, com dois ou três fados corridos que logo tiveram o coro acompanhante de
quantos ainda recordavam a letra. De imediato, o furriel Cunha (de saudosa
memória) perito em letras e canções de intervenção (nesta altura a PIDE parecia
andar arredado do mato) ripostaria com a declamação do Pedro Soldado, de Manuel Alegre e Adriano Correia de Oliveira:
Já lá vai
Pedro Soldado
Num barco da
nossa armada
E leva o nome
gravado
Num saco
cheio de nada
Triste vai
Pedro Soldado
Ainda as palavras trovejavam no ar quando outro
soldado madeirense entrava na competição, cantarolando, Paco Bandeira, no Lá longe onde o sol castiga mais…
Quem nunca
viu
Quem nunca
andou a combater
Não dá valor
nem faz ideia o que é sofrer
Ter de matar
Para não
morrer
Saber sofrer
sem chorar
Saber chorar
a sorrir
Lá longe
(…)
Para não ficar atrás, o alferes Coelho, lá foi
trauteando um fado coimbrão, a Samaritana, provocando um disfarçar de olhos
vidrados aqui e ali. A noite não ficou completa se os meus camacheiros,
liderados pelo Emanuel e pelo “Caganeira”, vestidos a rigor com umas toalhas de
ocasião e com as damas improvisadas, não rematassem com o Bailinho da Madeira, pondo toda a malta a dançar e a fazer mais
depressa a digestão. Na parte que me toca, lá me fui revezando na viola e no
acordeão, ajudado por um sexteto rítmico, no matraquear dos talheres nos copos.
Já a noite ia alta, ainda nos ecoavam nos ouvidos as últimas estrofes do nosso Malhão. Era hora do descanso do
guerreiro e, nessa noite, até o corneteiro teve de fazer horas extraordinárias.
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